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Religião e Relações Internacionais: dos Debates Teóricos ao Papel do Cristianismo e do Islã

Resenha de Livro

Religião e Relações Internacionais: Dos Debates Teóricos ao Papel do Cristianismo e do Islã. Anna Carletti, Marcos Alan S. V. Ferreira. (Coord.) Curitiba: Juruá, 2016.
ISBN: 978853625858-4.

[Essa resenha foi publicada originalmente na Revista de Estudos Internacionais – v. 9, n. 3 (2018)]

Religião e Relações Internacionais: Dos Debates Teóricos ao Papel do Cristianismo e do Islã é o fruto de uma longa colaboração entre os coordenadores e boa parte dos autores que compõem esta coletânea para o campo das Relações Internacionais (RI) no Brasil, sendo a obra mais importante no país, até aqui, para o estudo do fenômeno religioso na área, até então. Os professores Anna Carletti e Marcos Alan S. V. Ferreira procuram preencher uma lacuna de amplo diâmetro existente entre os internacionalistas brasileiros, o que resulta num profundo vazio de produção e reflexão sobre um dos temas mais emblemáticos da interação humana. Seguramente, tal vazio é decorrência de um distanciamento também global entre as Relações Internacionais e a religião, reflexo de uma suposta secularização do campo, teórico e prático, processo que teria sido iniciado após os tratados de Westphalia, ponto de partida da separação entre a religião e a política internacional.

Entretanto, a relação entre os novos Estados, suas populações, grupos e dinâmicas que se seguiram nos próximos três séculos, apenas demonstraram que o fenômeno religioso e seus desdobramentos jamais abandonaram o tecido social das relações internacionais (ri). Isto se comprova numa rápida observação do elemento religioso nas principais dinâmicas das ri, como a guerra, as migrações, o terrorismo, ou mesmo elementos dados como técnicos, como acordos de cooperação e tratados. Isso se não levarmos em consideração a atuação dos Estados ditos religiosos, como o Vaticano, o Irã, ou mesmo os Estados Unidos da América, no sistema internacional. Dessa forma, como a obra nos ajuda a compreender a proposta da secularização pós-westphaliana, apenas insurgiu como esforço de fortalecimento do recém-nascido sistema de Estados, que tentou colocar a religião como irrelevante, para ampliar o poder relativo das novas unidades políticas.

CapaO prefácio preciso do ex-chanceler brasileiro Celso Amorim, nos aponta essas e outras séries de questões, abordadas no texto com decidida felicidade, nas duas partes que estruturam o livro. A primeira parte, composta por artigos que estabelecem as bases teóricas para o estudo da religião a partir das lentes das Relações Internacionais, para tanto, é válida a contribuição de Jeffrey Haynes, autor inglês referência no subcampo há anos, o que demonstra o atraso com o qual o Brasil alcançou a chamada “virada para a religião” nas RI. As teorias das RI são espaços possíveis para o desenvolvimento da discussão, mais especificamente – e pelo menos – desde o levantamento do conceito de soft power, por Joseph Nye (2004), mas com espaço considerável, dentro da Escola Inglesa, representativa pelo expoente Barry Buzan. As exposições iniciais nos fazem perceber o peso da religião em dois tipos de atores: (a) os supracitados atores estatais; e (b) os atores não-estatais, como indivíduos, movimentos e instituições.

Uma discussão ainda mais essencial e relativa ao soft power, é perceber a religião como ator ou como fenômeno, o que nos remete ao seu poder de agência, uma vez que pode ser movido por outros atores e utilizado através dessa via, ou ser o elemento transformador das dinâmicas internacionais, como aponta Rodrigo Duque Estrada em sua contribuição detalhada e preciosa para uma agenda de pesquisa do tema em um campo que bloqueou a religião devido à onda da obsessão cientificista de períodos anteriores.

Na proposta do italiano Pasquale Ferrara encontramos a aproximação entre a religião e outra dinâmica essencial das relações internacionais, a política externa. Seu texto nos remete à transnacionalidade da religião, e nos faz perceber que existe uma identidade que é muito mais enraizada do que as identidades nacionais, são as identificações primordiais dos indivíduos e dos policymakers. Perceber isso, nos faz entender o peso do lobby israelense, presente na política externa estadunidense e com precisão trabalhada por John Mearsheimer e Stephen Walt (2006). Segundo tal lógica, antes de se identificar como norte-americanos, há a identificação com a religião judaica, o que imprime influência profunda no direcionamento da política externa em relação àquele país.

É com a compreensão de que tais especificidades, apenas compreendidas e explicáveis através de uma perspectiva que contemple o peso da religião para as relações internacionais, que a segunda parte do livro se debruça sobre uma série de estudos de caso, explorando empiricamente as bases firmadas até então. O excelente texto de  Anna Carletti e Cassio Ferreira Dias explora as relações entre Cuba e o Vaticano e como elas se mantiveram apesar de uma suposta oposição entre o comunismo e a Santa Sé. Tal rivalidade oporia um sistema político a uma religião, numa distinção impensada pela lógica tradicional, secularizada da academia de Relações Internacionais.

Contudo, pensar o cristianismo como uma oposição diametral do socialismo, com apontam os textos, pode estar tão distante da verdade quanto ratifica do atual líder da Igreja Católica, o argentino Francisco. Tal elemento será confirmado no capítulo seguinte, no qual Fábio Régio Bento aborda a importância da religião nos movimentos revolucionários da América Central no séc. XX. O professor Bento investiga a participação de membros da chamada esquerda cristã, a qual se refere como o Cristianismo de Libertação, aproveitando o espaço para expandir um questionamento recorrente em sua pesquisa recente – também abordado em seu livro Marxismo e Religião – sobre a suposta afirmação marxista de que a “religião é o ópio do povo”. A falácia é debulhada no texto, apontada como um erro de contexto e leitura, jamais dito por Marx, e apenas trabalhada pelo autor em manuscritos anteriores à sua construção filosófica estar completa. Seria, portanto, a religião, não um ópio para o povo, mas um sino eu toca para convocar as populações à revolução, como teria ocorrido na América Central. Tal abordagem nos aponta para outro nível de alcance do fenômeno religioso, agindo diretamente nas estruturas domésticas e influenciando nas transformações das dinâmicas estatais e sociais.

Elementos semelhantes estarão presentes nos textos de Marcos Alan S. V. Ferreira e Renan Honorato e Fernando Brancoli e Carolina Grinsztajn, que levantam as bases domésticas profundamente entrelaçadas coma religião, refletindo-se em questões de política externa para o Irã e o Egito, respectivamente. Este, o texto conclusivo da coletânea, aliás, levanta questionamentos e reflexões também sobre o Estado Islâmico e seu desenvolvimento como grupo agressor e suposta estrutura estatal de fato, contrapondo sua existência ao posicionamento da Irmandade Muçulmana no Egito.

Ainda, a Política Externa dos Estados Unidos é tratada em duas perspectivas diferentes. Luiza Rodrigues Mateo demonstra o peso discursivo e o mito do excepcionalismo estadunidense a partir da perspectiva da direita cristã do país. Enquanto Igor Castellano da Silva explora a religiosidade intrinsecamente condensada no imaginário cultural e político do país, em perspectiva comparada com a Política Externa Brasileira.

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A obra aqui abordada, de fato, demonstra satisfatoriamente, a importância do tema religião para o estudo das Relações Internacionais e nos faz questionar sobre os motivos pelos quais o tema foi repelido da agenda, em nome de uma profunda positivação e cientificização do campo. A obsessão cientificista gerou obstáculos e descrença à uma série variáveis ditar perturbadoras e imensuráveis, como a maior parte dos elementos relativos à cultura e identidade, como a religião. Para o campo, isso resultou numa ampliação sobremaneira de agendas duras e da exclusão de elementos ricos em profundidade e diversidade, como a religião.

É importante entender, no entanto, que a proximidade entre a ciência e a religião, por vezes, é inversamente proporcional à distância que julgamos existir. As Relações Internacionais, por exemplo, podem ser vistas como uma enorme composição religiosa em si mesma, com seus dogmas e entidades próprias, como a anarquia internacional, a soberania dos seus Estados, ou os próprios Estados. Composições abstratas, nas quais depositamos crenças e ratificamos a existência.

Nesse sentido, Religião e Relações Internacionais: Dos Debates Teóricos ao Papel do Cristianismo e do Islã vem ocupar um espaço que foi intencionalmente aberto, uma brecha gerada por uma rachadura traumática e por muito tempo mantida por interesses diversos. O livro atende a esse objetivo de tal maneira que alcança também o desígnio essencial e semântico da religião, religando o tema ao campo de maneira assaz. Sua leitura é gratificante e, sobretudo, instigante. Que seja a pedra fundamental do desenvolvimento dessa agenda de pesquisa no Brasil.


Referências

HAYNES, Jeffrey (2009). Routledge Handbook of Religion and Politics. Routledge. 270 Madison. Avenue, New York.

FOX, Jonathan (2004). Bringing religion into international relations / Jonathan Fox and Shmuel Sandier. p. cm.—(Culture and religion in international relations) Includes bibliographical references and index..

Nye, Joseph (2004) Soft Power: The Means to Success in World Politics, New York: Public Affairs.

Mearsheimer, John & Walt, Stephen (2006). “The Israel Lobby” en The London Review of Books, Vol. 28 No. 6. 23.


Por Fábio Nobre (UEPB)
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