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Por que a “teocracia” é um conceito falho em RI?

Teocracia: governo por orientação divina ou por funcionários considerados divinamente guiados.

A (re) emergência da religião no estudo das RI traz consigo o desafio de avaliar continuamente a linguagem que empregamos ao descrever a atividade de atores e interesses religiosos nos assuntos mundiais. Esse processo pode envolver a expansão do nosso léxico e, quando necessário, a declaração de que epítetos de longa data não são mais úteis.

Com isto em mente, é hora de conversarmos sobre “teocracia”. Este é um termo comumente usado que, por um lado, categoriza de forma eficiente os Estados que são liderados por autoridades religiosas, mas, por outro lado, representa erroneamente tanto a forma quanto a substância da política liderada pela religião em todo o mundo.

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Existem (pelo menos) duas razões pelas quais a “teocracia” é um conceito fracassado em RI.

Em primeiro lugar, “teocracia” é um estereótipo, promovido no Ocidente, da política moldada pelas normas e leis islâmicas. O termo ganhou destaque em RI, com analistas ocidentais tentando entender a revolução desconcertante de 1979 que deu origem à República Islâmica do Irã. Como descrever um país que agora estava sendo administrado por clérigos? Como definir um sistema que agora era supremamente governado por um alto tribunal de autoridades religiosas? Não demorou muito para que os movimentos para promover as normas do direito religioso como fonte primária de governança no mundo islâmico fossem universalmente descritos como “teocráticos”.

Um problema com o uso de estereótipos em estudos políticos é que eles homogeneizam fenômenos que seriam melhor entendidos como diversos. Por exemplo, a maioria muçulmana política influencia e habita uma ampla variedade de sistemas políticos. Numerosos Estados, notadamente no mundo islâmico, utilizam fortes tradições religiosas majoritárias no desenvolvimento da unidade nacional e cultural, produzindo uma variedade de culturas políticas, desde a monarquia absoluta (Arábia Saudita) até a oligarquia clerical (Irã) e a democracia (Indonésia).

Em suma, o termo teocracia enfraquece o uso de descrições mais precisas, mas igualmente sucintas, da influência islâmica em nível estatal.

Em segundo lugar, a “teocracia” tornou-se uma caricatura da ameaça mais ampla que a religião representa para a sociedade política. Digite “teocracia” em qualquer mecanismo de busca e seja confrontado por comentários alertando sobre um apocalipse vindouro se a religião for deixada na praça pública. “Os teocratas estão marchando e devem parar” as manchetes dão uma contribuição proeminente, referindo-se à religião como “síndrome da desordem da fé” que inevitavelmente leva à crença de que ” a Bíblia é uma espécie de  “guia de políticas públicas”, e pode ser identificada como a causa central de crises de segurança como o conflito entre Israel e a Palestina e o impasse nuclear entre o Paquistão e a Índia. Vemos aqui o uso da “teocracia” meramente como um termo de abuso lançado no fim picante das guerras culturais do campo do ateísmo fundamentalista em direção ao religionismo fundamentalista através de uma exibição divertida, às vezes preocupante (“Precisamos acabar com a fé”) do ativismo anti-religião.

O efeito dessa abordagem, que pode apropriadamente ser chamada de “síndrome obsessiva da teocracia”, é uma perpetuação da ignorância sobre o problema e a promessa da política informada pela religião e sua contraparte secular. Os analistas de assuntos internacionais podem atestar com mais credibilidade os efeitos de muita e pouca religião na cultura política, cada um medido em uma escala de violência de moderada a extrema. Um alinhamento irrefletido entre religião e “teocracia” nega que recursos seculares e religiosos sejam utilizados para conter essa violência.

A “teocracia” como estereótipo e caricatura tem pouco a oferecer para as RI como um conceito útil para a pesquisa da religião no futuro. Quase três décadas de análise acumulada ajudaram a abrir a dicotomia dominante outrora, onde os elementos seculares e sacros da sociedade política foram enquadrados dentro de uma disputa de soma zero pelo poder. A “teocracia” como conceito promete apenas reviver esse constructo que se esvai, impedindo novos avanços na teoria e na política. Um léxico rico e extenso de termos está agora à nossa disposição para fornecer alternativas à “teocracia” ao descrever a dinâmica da política liderada pela religião em todo o mundo. Está na hora dos estudiosos o deixarem partir.


Por Fábio Nobre (UEPB)
Recomenda-se a leitura de HERRINGTON, Luke M., MCKAY, Alasdair & HAYNES, Jeffrey. Nations under God: The Geopolitics of Faith in the Twenty-First Century. E-IR. Bristol, England Published. 2015. Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.

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