
Por Pedro G. C. Soares (FDIC/UniFBV – Wyden)
Por que há uma incidência forte da religião no contexto político na Índia? Para responder essa pergunta, de maneira concisa, apontamos a cultura política do país como vetor que maximiza a religião na política. Assim, é importante colocar que a República secular na Índia teve início com uma forte influência religiosa, e que as diversas religiões, que convivem no contexto indiano, têm em suas filosofias princípios de hierarquia social e disparidade na universalização dos direitos. A construção do Estado republicano naquele país resultou em uma ordem despreocupada em garantir os direitos de forma plural, nem provocou a efetivação do exercício da cidadania, seja por estar baseada em uma sociedade de raízes religiosas que historicamente não proporcionavam valores como liberdade e/ou igualdade aos indivíduos, ou por outros fatores.
A maturação desse Estado constantemente articulado à religião vai propiciar uma cultura política onde, muitas vezes, o interesse pela cidadania é ausente, e que, de forma direita ou indireta, favorece a construção de um “nós” e “eles”, explicitando o desenvolvimento de identidades (individuais e/ou coletivas) que, do ponto de vista de Chantal Mouffe, representa sempre um ato de poder e instiga a dissensão, o conflito, a disputa, característica da teoria agonística. E ainda, uma cultura política democrática circundada pela religião que corrobora a participação política, favorece a multiplicidade de conotações, assim como, à maximização do pluralismo político.
As fundações da sociedade e do Estado na Índia tem essencialmente matrizes religiosas. A Índia se construiu como civilização milenar primordialmente através de tradições filosóficas hindus, resultantes de uma pluralidade de crenças, que têm como uma das questões mais importantes a separação dos direitos e deveres do indivíduo conforme sua casta (varna), classe social ou fase da vida. Na recente História indiana, há fortes evidências de que o quesito religioso tenha auxiliado na construção do pensamento moderno sobre quem é superior ou inferior socialmente, ocasionando uma segregação social, seja no interior da religião, como no caso do hinduísmo, com o sistema de castas (varnas), ou provocando uma hierarquização entre as religiões, onde uma vê seus crentes como superiores aos das outras religiões. Ainda que o fator religioso não seja o único a estruturar essa segregação, ele compreende um viés que abrange raízes profundas da formação da sociedade moderna e permanece nela de forma recorrente. O argumento de que a religião e suas práticas exercem efeito na gênese de inúmeras categorias fundamentais da modernidade é analisado por Giorgio Agamben quando ele estuda a arqueologia do ofício divino, na sua obra Opus Dei: a arqueologia do Ofício. Agamben demonstra porque o mistério litúrgico é a chave para compreendermos como a modernidade forjou a ética, a ontologia, a política, etc. “Mistério significa a essência íntima da ação sacra, isto é, a obra redentora proveniente do Senhor dos ritos sacros por Ele instituídos, e liturgia indica a ação da Igreja em união com a obra salvífica de Cristo” (AGAMBEN, 2013, p.44). Ou seja, a ação da Igreja e suas consequências incidem na construção dos parâmetros sociais da modernidade.
Legando essa ideia à chegada do advento da República na Índia, o esforço e o entusiasmo inicial de implantar um regime secular, de acordo com os moldes ocidentais, em uma sociedade bastante religiosa revelou a construção de uma estrutura que se adequaria, aos poucos, aos valores da sociedade hindu. O Estado não ficou imune à influência religiosa, nem deixou de interferir em assuntos de ordem religiosa. A implantação dos valores republicanos ficou extremamente fragmentada quando da continuidade velada da realidade social colonial. No início do período republicano havia um comprometimento do Estado indiano de implantar parâmetros republicanos importados como a universalização dos direitos, o secularismo, a igualdade, a liberdade, entre outros valores, porém, ainda hoje matura e repensa todos esses valores. Talvez, nem as elites, fascinadas pela possibilidade de importar tal regime político em voga na Europa, tenham se acostumado com a ideia de que a “República proclama a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular, (…) e, além disso, visa exatamente a responder às perguntas sobre as dificuldades que há quando os mesmos que mandam devem obedecer” (RIBEIRO, 2008, p.18-21).
Na Índia, a religião predominante não foi trazida pelos colonizadores. A tradição hindu, natural do subcontinente asiático, influenciou diretamente a identidade nacional republicana do país. O início dessa tradição não se situa em um ano nem em um século específico. A civilização indiana mais antiga que se estabeleceu naquela região, por volta de 3.000 a.C., já produzia imagens de figuras que têm características em comum com a posterior divindade hindu Shiva. No desenvolvimento das várias Eras (Védica, Brahmânica, Islâmica) na história da Índia, a religião permaneceu vinculada ou articulada ao Estado, muitas vezes definindo as funções, traçando as fronteiras e as decisões do governo (COPLAND, 2012). Contudo, essa religião a que nos referimos não é propriamente o hinduísmo, mas as crenças hindus (religiões védica e bramânica). Os anos de colonização ocidental no subcontinente asiático foram fundamentais para a construção e/ou invenção do hinduísmo, da forma que conhecemos hoje. A complexidade da filosofia hindu, entendida como um estado de espírito, uma forma de vida e, socialmente dividida, não se encaixava nos parâmetros do que se entendia por “religião” até o século XVIII, ou seja, ela não possuía textos sagrados, doutrinas e formalidades de corpo eclesiástico. Então, o empreendimento colonial se encarregou de produzir a ideia de uma religião hindu unificada e simplificada aos moldes ocidentais. Isso incluía a ênfase no poder da trindade divina chamada de Trimurti composta por Brahma, Shiva e Vishnu; a importância das composições hindus, os Vedas e os Upanishads, que de literatura sruti (que em sânscrito significa ‘o que deve ser escutado’) até então transmitidos oralmente através de versos, passaram a ser reconhecidos como textos sagrados e recorrentemente escritos, etc. Tudo isso no sentido de adequar a forma de entender a crença hindu ao conceito de religião ocidental cristão, sob o pretexto de que as religiões indianas formavam um todo pan-indiano, ignorando a multiplicidade de crenças e tradições que passou a ser aglomerada em um só conjunto, o hinduísmo. Esses fatores se justificavam pela necessidade da iniciativa colonial de controle e dominação dos indianos, inclusive, sob o aspecto religioso.
Durante o Raj Britânico, período que antecede a República Indiana, a onda de dominação impulsionada pelo imperialismo europeu, pelo darwinismo social, pela campanha de ocidentalização imposta pela Companhia Britânica das Índias Orientais, incluiu uma força militante de cristãos evangélicos que viam na Índia um desafio a ser conquistado e fazia parte do pressuposto de que a humanidade estava congenitamente infectada pelo pecado original de Adão e, portanto, era tarefa deles desenvolver o “interesse” pela conversão. Através desses meios, o colonialismo britânico interveio na política interna dos Estados indianos, pôs fim ao Império Mugal (1526-1858), proibiu o casamento hindu entre crianças e a tradição da sati (viúva que se imolava na fogueira funerária de seu marido), perseguiu os Thugs/Tuggees (fraternidade de assassinos e ladrões de viajantes que atuavam no subcontinente indiano, no século XVIII e XIX, que justificavam suas ações em nome da deusa hindu Durga), usou o sistema de castas, uma tradição milenar na cultura indiana, para legitimar e aprofundar as diferenças sociais, etc. Devido a esse contexto, a resistência dos indianos se construiu a partir, principalmente, das modificações culturais e religiosas provocadas pela colonização.
A principal mobilização contra o colonialismo britânico antes da independência foi a Rebelião dos Cipaios (1857), nome dado aos soldados indianos (hindus e muçulmanos) da Companhia Britânicas das Índias Orientais, que se amotinaram descontentes com o recrutamento de indianos de outras castas além da brâmane e da xátria, as castas altas do hinduísmo. Eles não admitiam fazer parte do mesmo grupo que os das castas baixas. Outro motivo envolveu a obrigação de pagar pelo transporte das bagagens quando eram deslocados para operações distantes no sul asiático, muitas vezes pelo mar, em condições de grande impureza para os membros das castas altas. Por fim, a razão mais importante, também relacionado à causa religiosa, foi o uso da gordura animal na fabricação de cartuchos para as armas britânicas. Os cipaios, que haviam sido treinados para rasgar o cartucho com os dentes e introduzir a pólvora na arma, suspeitavam que a gordura empregada na fabricação do cartucho era o sebo bovino (inadmissível na alimentação dos hindus, porque a vaca é um animal sagrado nessa religião) ou a banha suína (inaceitável na dieta dos povos islâmicos). Assim, eles se recusavam a usar o material.
Depois de massacrada pelos britânicos, a rebelião impulsionou a discussão em torno da questão das castas e o fortalecimento de movimentos nacionalistas desencadeando a luta para libertação do Império Britânico, já na primeira metade do século XX. Apesar de o debate sobre o sistema de castas apontar para um nacionalismo hindu apoiado nas castas, crescia um nacionalismo étnico de exaltação do povo hindu, o Hindutva. As ideias do nacionalismo hindu através das castas eram protagonizadas pelos ensinamentos do monge hindu Vivekananda, um grande influenciador das ideias pacifistas de Mahatma Gandhi, o qual enfatizava que “as castas têm o seu lado negativo, mas seus benefícios prevalecem sobre as desvantagens; e é da natureza de uma sociedade formar-se em grupos; a casta é uma ordem natural”. (BAYLY, 2001, p.165) Por outro lado, o Hindutva, o nacionalismo étnico do povo hindu, crescia como reação à crescente mobilização pan-islâmica, o movimento Khilafat, que tentava influenciar o Raj Britânico e, mais tarde, desencadearia na criação do Paquistão. O movimento Khilafat foi uma campanha, de 1919 até 1925, lançada pelos muçulmanos na Índia Britânica para pressionar o governo britânico a preservar as fronteiras do Império Otomano, assim como, conservar a autoridade espiritual e temporal do sultão otomano como califa do Islã.
A ideologia Hindutva, desenvolvida por Vinayak Damodar Savarkar em 1923, formulou uma nova concepção de identidade para o povo hindu, pregando que o sistema de castas é algo perverso para a sociedade indiana, e preconizando que todos que compõem o povo hindu devem ser iguais como cidadãos, rejeitando a proposta de que a identidade indiana era composta por uma pluralidade de culturas e crenças. Nessa ideologia, os hindus são vistos como superiores e definidos por parâmetros raciais e culturais, excluindo-se todos aqueles de diferentes etnias e crenças, considerados cidadãos de segunda, que num contexto ideal não deveriam viver no território indiano. Os critérios que compõem a identidade da nação hindu, a partir do Hindutva, são: o território sagrado descrito nos Vedas, a etnia hindu que ocupa a Índia desde os tempos védicos, o hinduísmo como crença principal e o uso dos idiomas sânscrito e hindi.
A forma de pensar o nacionalismo através do Hindutva é diferente de tê-lo como um fenômeno ligado ao capitalismo ocidental, a exemplo das nações europeias a partir do século XVIII, como bem colocam Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson. Porém, o nacionalismo indiano utiliza meandros citados por esses autores que perpassam toda a sociedade hindu, como o incentivo ao uso dos idiomas tradicionais hindus – quando “a língua não é um instrumento de exclusão, pelo contrário, ela é fundamentalmente inclusiva” (ANDERSON, 2008, p. 190) – na tentativa de criar uma cultura superior padronizada (GELLNER, 1993, p.117), em razão dos interesses, aspirações e necessidades das pessoas comuns (HOBSBAWM, 2002, p.33), assim como, instigando o sentimento de pertencimento a uma nação, existindo possibilidades de haver o interesse e o exercício da cidadania.
No decorrer do movimento pela independência, que foi um evento político-religioso, o caráter agonístico estruturado pelas organizações que defendiam o Hindutva e pelo Partido do Congresso Indiano, grupo representado pela crescente figura de Gandhi, era circundado por um argumento de representação simbólica, o de que a Índia é uma terra sagrada, de acordo com algumas composições hindus. “Desde os primeiros textos sânscritos, a Índia tem sido considerada uma mãe divina; em séculos mais recentes, ela foi saudada em muitas canções como ‘Mãe Índia’”. Esse simbolismo adquiriu um viés político em todo o subcontinente indiano. Assim, foi disseminada a ideia de que a “Mãe Índia” era mantida cativa por forças estrangeiras. A força dessa ideia gerou uma discussão ainda maior em torno das castas.
Naquele contexto, as organizações do Hindutva defendiam o princípio da terra sagrada como território de construção da nação hindu sem castas, considerando os budistas, sikhs e jainistas como hindus por tradição histórica, e desconsiderando os mulçumanos e os cristãos. Diferente daqueles, os integrantes do Partido do Congresso simpatizavam com a permanência das castas, se coligando, em certo momento, com o movimento islâmico Khilafat, para terem força no processo de libertação da dominação britânica. Mesmo depois da independência, com o Partido do Congresso no poder do Estado Indiano, tendo formulado e promulgado uma Constituição, em 1950, que rejeita a discriminação com base na casta, em consonância com os princípios democráticos e seculares que fundaram a nação, a rigidez do sistema de castas ainda permaneceu, e continua como um enorme obstáculo para a dissolução dos problemas sociais indianos, para a promoção de um Estado garantidor de direitos e para a efetivação do exercício da cidadania.
Por Pedro Gustavo Cavalcanti Soares (Docente da graduação em Relações Internacionais na Faculdade Damas da Instrução Cristã e da graduação em Direito no Centro Universitário UniFBV – Wyden. Doutor em Ciência Política [UFPE]).
Recomenda-se a leitura de:
AGAMBEN, Giorgio. Opus Dei: Arqueologia do Ofício. São Paulo: Boitempo, 2013.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
BAYLY, Susan. Caste, Society and Politics in India: from the eightteenth century to the modern age. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
COPLAND, Ian et al. A History of State and Religion in India. New York: Routledge, 2012.
GELLNER, Ernest. Nações e Nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993.
HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
JAFFRELOT, Christophe. Religion, Caste and Politics in India. London: Hurst & Company, 2011.
MOUFFE, Chantal. Agonística: pensar el mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.
PENNINGTON, Brian. Was Hinduism Invented? Britons, indians, and the colonial construction of religion. Oxford: Oxford University Press, 2005.
RIBEIRO, Renato Janine. Democracia Versus República: a questão do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO, Newton (org.). Pensar a República. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.18-21.
SUGIRTHARAJAH, Sharada. Imagining Hinduism: a postcolonial perspective. London: Routledge, 2003.
