
A chegada do coronavírus – COVID-19 – como uma ameaça com potencial para interromper o sistema internacional e abalar os pilares da religião global organizada nos lembrou mais uma vez do poderoso impacto que as doenças podem ter na civilização e na religião. É fundamental entender, portanto, de que forma as mensagens passadas pelos líderes globais e religiosos, em especial, a bênção Urbi et Orbi – ministrada pelo Papa Francisco a uma Praça vazia com tons escatológicos – podem ser entendidas para a continuidade dessas instituições.
Após a grande influência do positivismo nas ciências sociais, a Peste Negra passou a ser um dos mais comuns exemplos da conexão entre a autoridade clerical, a vontade de Deus, e a ignorância e desconhecimento com os quais fenômenos que mereciam tratamento científico eram encarados. Em seu livro de 1952 sobre a história social da tuberculose, “A Peste Branca”, os sociólogos Rene e Jean Dubos descreveram as doenças, por sua vez, como uma dinâmica que dividia as épocas da história humana.
No entanto, antes de analisar seu impacto na religião, devemos abordar o efeito do coronavírus no sistema internacional. Esse sistema, que é frequentemente considerado como tendo se desenvolvido a partir do Tratado de Vestfália de 1648, é aquele que toma como base a divisão do mundo entre Estados-nação com fronteiras distintas e, em especial, a distinção entre a autoridade política e a religiosa.
Assim como nas epidemias que a precederam, as fronteiras não são obstáculo para o vírus COVID-19. Conceitos como nação ou fronteiras nacionais, construídos como são, a partir de códigos culturais, nem sempre são explicativos quando tratamos de dinâmicas biológicas que ocorrem na natureza.
A questão crítica é se o coronavírus enfraquecerá ou não a dinâmica da globalização e, por conseguinte, das religiões globais. Em um artigo publicado na Foreign Policy, o economista britânico Philippe Legrain chamou o COVID-19 da sentença de morte da globalização. Sua evidência para isso veio das respostas de nações de todo o mundo que, entre outras medidas, fecharam suas fronteiras para proteger seus cidadãos do vírus.

- Brian Stauffer, para a Foreign Policy
Mas alguns desses mesmos países também fecharam partes de seus países dentro dessas fronteiras nacionais. Foi o caso da Itália, que isolou o norte do país antes de entrar em um bloqueio total, e das Filipinas, que fecharam sua capital, Manila.
Esta leitura da situação política pode ser vista como falha: primeiro é necessário definir a natureza da ameaça nos termos das relações internacionais.
Não é que a espécie humana esteja sendo alvo de outro grupo organizado – o vírus. Tampouco é o caso de dois grupos de humanos tentando destruir um ao outro por razões ideológicas ou nacionalistas. Assim, as pessoas estão respondendo ao vírus principalmente não politicamente, mas biologicamente. Para ser claro, estamos sendo atacados por outra espécie e nosso ponto de partida básico é tentar permanecer vivo. Como não temos uma vacina – a arma de que precisamos para combater o COVID-19 – devemos fugir dela, pois o antílope foge de um leão.
Se você não possui o poder de destruir seu inimigo, você corre ou se esconde.
Portanto, é importante não politizar essa luta.
Para nos proteger contra esse tipo de abordagem falha, devemos nos ver não como cidadãos, liberais, socialistas ou cristãos, budistas, judeus ou muçulmanos contra o vírus, mas simplesmente como homo sapiens reagindo a ele.
Existem diferentes maneiras de ler o impacto político do coronavírus. Pode-se dizer que o vírus corroeu a globalização. Ainda de outra perspectiva, os Estados modernos que investiram bilhões de dólares em armas foram incapazes de proteger seus cidadãos. A idéia mais brilhante que os Estados mais modernos do ano 2020 tiveram é dizer aos cidadãos para ficar em casa.
Em outras palavras, o COVID-19 também está corroendo a reputação do Estado moderno.
O discurso público sobre o coronavírus também pode variar de acordo com a região. Na Turquia, Índia, Irã e Brasil, por exemplo, a relação entre religião e ciência é referenciada durante o debate.
Um debate mais amplo poderia se formar em torno da relação teórica entre religião e ciência. Em países como Brasil, Turquia e Irã, os argumentos desencadeados pela chegada do vírus abalaram a imagem popular da religião, particularmente entre as gerações mais jovens.
O colunista do New York Magazine, Ed Kilgore, disse que o coronavírus está testando a religião organizada e que, como resultado, as pessoas podem começar a ver rituais religiosos lotados com suspeita quando a pandemia terminar. Isso poderia levar as pessoas religiosas a uma fé mais individualista.
Seja qual for a religião de origem, eventos como o fechamento do local mais sagrado do Islã, em Meca, na Arábia Saudita, e, em especial, o auto-isolamento do Papa Francisco ocuparão um lugar muito maior nas memórias dos jovens.

A imagem da Praça São Pedro, no vazio e no escuro, com apenas a figura quase fantasmagórica do argentino Jorge Bergoglio, em suas vestimentas e alcunhas papais de Francisco, aparenta ser apocalíptica, mas pode, na verdade, estar passando outra mensagem: o fim é necessário para o recomeço.
A bênção Urbi et Orbi era a fórmula usual com a qual as proclamações do Império Romano começaram. Atualmente, é a bênção mais solene que o Papa concede, própria do ministério petrino, porque se refere à cidade de Roma, como bispo da diocese, e ao mundo, como sumo pontífice.
Em latim, Urbi et Orbi significa “para a cidade (Roma) e para o mundo”. Durante o ano, ela é transmitida em duas ocasiões: domingo de Páscoa e dia de Natal, 25 de dezembro. O pontífice também a transmite no dia de sua eleição, quando se apresenta diante de Roma e do mundo como o novo sucessor de São Pedro.
A bênção Urbi et Orbi é, ainda, uma bênção à qual uma indulgência plenária está ligada. Dado que uma indulgência plenária remete completamente a punição devida, o falecido, se não voltar a pecar, não passa pelo purgatório, mas vai diretamente para o céu. Os efeitos da bênção Urbi et Orbi são cumpridos para todos aqueles que a recebem com fé e devoção, inclusive se os recebem através dos meios de comunicação de massa (televisão, rádio, Internet, etc.).
Excepcionalmente, portanto, diante desse momento de emergência mundial da saúde, devido ao Coronavírus, o Santo Padre decidiu conceder a bênção, simultaneamente – embora aparentemente de forma paradoxal – a ninguém, e a todos.
Por disposição do Papa, a Penitenciária Apostólica concede também uma Indulgência Plenária aos fiéis que oferecem uma visita ao Santíssimo Sacramento ou Adoração Eucarística, ou a leitura da Sagrada Escritura por pelo menos meia hora, ou rezam o Santo Rosário, ou faça o piedoso exercício da Via Crucis ou ore ao Terço da Misericórdia Divina, para implorar a Deus Todo-Poderoso pelo fim da epidemia, alívio para os aflitos e a salvação eterna daqueles que o Senhor chamou a Si mesmo.
No momento em que visitas estão suspensas, aglomerações proibidas, e a aproximação dos marcos sagrados são inconcebíveis. Francisco, o papa antissistêmico decide levar Deus à cidade e ao mundo. O papa acaba dando continuidade ao seu processo como uma figura distinta na história dos pontificados, mas oferece uma oportunidade de recomeço à lógica da religião global organizada. Oportunidade que só surgiria em condições ideais, em que uma força da natureza se encontra com um líder diferente de seus antecessores, e com uma agenda não só reformista, mas transformadora.

É aparente que houve uma grande divisão conceitual entre fé e religião em países como o Brasil, a Turquia e o Irã. Estamos vendo os primeiros sinais de uma geração que manterá sua fé, mas poderá permanecer distante da religião organizada e institucionalizada.
A solidão do papa terminará como um daqueles momentos decisivos que captura nossa história e nossa angústia. Os romanos estão acostumados a avaliar o sucesso de qualquer papado em grande parte pelo tamanho e entusiasmo das multidões que o papa consegue atrair. Nesse caso, o sucesso de Francisco poderá ser medido pelas multidões que conseguiu afastar.
Por Fábio Nobre (UEPB)
Recomenda-se a leitura de:
ALLEN JR. John. Francis on Friday delivered an iconic image that stirred a country’s soul. In: Crux. 2020. Disponível em: https://cruxnow.com/news-analysis/2020/03/francis-on-friday-delivered-an-iconic-image-that-stirred-a-countrys-soul/
LEGRAIN, Phillip. The Coronavirus Is Killing Globalization as We Know It. In: Foreign Policy: Argument. 2020. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/03/12/coronavirus-killing-globalization-nationalism-protectionism-trump/
LOPEZ, Larissa. What is the ‘Urbi et Orbe’ Blessing? Pope Francis is Imparting it Today Extraordinarily. In: Zenit. The World Seen From Rome. Pope and Holy See. 2020. Disponível em: https://zenit.org/articles/what-is-the-urbi-et-orbi-blessing-pope-francis-is-imparting-it-today-extraordinarily/
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