Debates

Os muitos Ramayanas e o monopólio do pensamento

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Battle at Lanka, Ramayana, Udaipur, 1649-53

Esta é minha primeira abordagem a qualquer escrita hindu ou hinduísmo de qualquer tipo, por isso tentarei falar com muito cuidado, pois estou fora do meu lugar de fala. Novamente, não sendo versado de nenhuma maneira nessas escrituras ou suposições teológicas, vou ficar longe delas, por enquanto, e tentarei focar em uma análise crítica da ação política que será apresentada, a qual descreverei como uma tentativa de monopolizar o pensamento.

Para mais abordagens vinculando o hinduísmo e Relações Internacionais, recomenda-se a leitura do trabalho do Prof. Dr. Pedro Cavalcanti Soares, membro do CEPRIR.


O Ramayana pertence a uma classe de literatura conhecida em sânscrito como kavya (poesia), embora no Ocidente seja considerada como pertencendo à categoria de literatura familiar aos leitores de Homero, o épico. É um dos dois épicos – o outro sendo o Mahabharata – que tiveram uma influência decisiva na formação da natureza da civilização indiana. O Ramayana existia na tradição oral talvez já em 1.500 aC, mas o século IV aC é geralmente aceito como data de sua composição em sânscrito por Valmiki. Embora alguns ideólogos de direita nos últimos anos, ansiosos para que o Ramayana tenha o mesmo tipo de historicidade associado a ele que as escrituras do cristianismo e o Corão, tentaram datar o Ramayana mais atrás em pelo menos 6.000 anos e até fornecer uma data exata de sua composição. Sugerir que a historicidade do Ramayana é a menos interessante das questões que podem ser levantadas sobre ele e seus personagens de maneira alguma diminui a importância do texto. Se de fato seu herói, Rama – que na mitologia hindu é um avatar de Vishnu, mas uma divindade principal por si próprio, e que também é adorado em partes do norte da Índia como rei – existiu ou não, é de pouca importância. O outro tipo de excesso é vê-lo meramente como uma figura metafórica – como um sinal do patriarcado, por exemplo, ou como a insígnia de uma coletividade xátria valente e militante, que é no que a atual geração de Hindutvavadis o transformou.

A estrutura principal da história do Ramayana é extremamente conhecida na Índia, e absorvida por todos os indianos. A terra de Koysala, que tinha Ayodhya como sua capital, é presidida por Dasaratha. Embora seu filho mais velho, Rama, filho de sua rainha Kausalya, tenha direito ao trono, e Dasaratha esteja interessado em que Rama suba ao reinado, a outra rainha de Dasaratha, Kaikeyi, manipula para que Rama seja exilado por catorze anos, para ter seu próprio filho, Bharatha, coroado como rei. Embora Bharatha não faça parte da trama e seja dedicado a seu irmão mais velho, Rama segue para a floresta, acompanhado por seu irmão Lakshmana, que é um dos dois filhos da terceira rainha de Dasaratha, Sumithra, além de sua esposa, Sita, conhecida por sua beleza e virtude incomparável.

Na floresta, Rama e seu grupo têm inúmeras aventuras, mas é o sequestro de Sita por Ravana, o rei demônio do Lanka, que prepara o cenário para a batalha épica entre Rama e Ravana. Em seus esforços para encontrar Sita, cujo paradeiro é desconhecido, Rama é auxiliado por Hanuman, o deus-macaco ou deus do vento. Na literatura e mitologia indianas, não há exemplo maior de devoto perfeito que Hanuman. Eventualmente, Ravana, seus parentes e toda sua força são derrotados por Rama e seus aliados militares, e em triunfo Rama retorna a Ayodhya com Lakshmana e Sita e é coroado rei.

É importante reconhecer que não há um único Ramayana na Índia. De fato, a composição original em sânscrito de Valmiki raramente é lida hoje em dia, e os Ramayanas mais comuns estão nos idiomas indianos “vernáculos”. No sul da Índia, por exemplo, o Ramayana de Kamban, escrito em Tamil no século XI, prevalece; no norte da Índia, o Ramayana de Tulsidas, chamado Ramacaritmanas, tornou-se lendário. Mesmo entre os hindus que vivem em lugares longínquos da diáspora indiana, como Fiji e Trinidad, o Ramacaritmanas é o texto devocional do hinduísmo por excelência. Existem Ramayanas em praticamente todas as principais línguas indianas e algumas dezenas de traduções, principalmente abreviadas, e “transcrições” em inglês. Na versão bengali da história, Ravana se transforma no herói, e essa narrativa foi retomada pelo escritor bengali do século XIX, Michael Madhusudan Dutt (1824-73), cuja recontagem épica do Ramayana retrata Rama como uma figura fraca e afeminada, numa tentativa de representar um estágio anterior de ingenuidade política e paroquialismo. Não é surpresa que uma estudiosa americana, Paula Richman, tenha escrito sobre os “Muitos Ramayanas” em um livro com o mesmo título (1991).

Embora a história principal do Ramayana possa parecer sem muita complexidade, o épico apresenta numerosos problemas de interpretação, como já foi sugerido. É verdade que Rama aparece nas representações populares da Índia (especialmente no norte) como o próprio modelo do marido monogâmico e rei justo e bom. Da mesma forma, Sita tem sido vista como o modelo supremo da esposa virtuosa, que se sacrifica e obedece, a personificação suprema da feminilidade. Mas mesmo uma leitura superficial do Ramayana coloca essa interpretação em risco. Um problema é que o Ramayana aparece em muitas versões, e os finais variantes ilustram a natureza das diversas leituras.

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King Dasaratha and His Retinue Proceed to Rama’s Wedding. (Domínio Público)

Na versão geralmente aceita da história, depois que Rama resgatou Sita e a trouxe de volta a Ayodhya, surgiram vários rumores sobre a fidelidade questionável de Sita, o que perturbou Rama. Embora o herói percebesse que sua esposa era o modelo de virtude imaculado, e que ela não teria se submetido aos avanços sexuais de Ravana, em cujo cativeiro ela havia permanecido por muitos anos, algumas dúvidas começaram a surgir em sua própria mente. Além disso, como rei, era seu dever acalmar as ansiedades expressas por seus súditos. Consequentemente, ele submeteu Sita a um teste público: se ela pudesse sair incólume das chamas do fogo, essa seria a prova cabal de seu caráter moral impecável. Sita passa no teste (agnipariksha) com louvor, e doravante ocupa seu lugar ao lado de Rama, e juntos eles presidem Ayodhya. Em um final diferente, Sita é enviada para passar o resto de sua vida no eremitério de Valmiki, onde ela dá à luz os gêmeos Lava e Kusa; e, eventualmente, suplicando à terra, da qual ela descende, para ser sua testemunha, Sita retorna à terra de onde ela havia saído. Isso pode ser visto como uma repreensão a Rama, como uma reafirmação do princípio feminino contra a masculinidade da política real. Uma reinterpretação recente e comovente do Ramayana por Ramachandra Gandhi sugere que a parte sobre o agnipariksha não faz parte da história como apareceu na tradição oral, sendo adicionada no caso de homens patriarcais que passaram a exercer crescente influência na sociedade indiana.

Até o caráter de Rama não deixa de ter suas manchas. Por outro lado, mesmo o Ramacaritmanas de Tulsidas, que é a mais patriarcal das versões amplamente lidas, reconhece que Ravana não era desprovido de certas qualidades admiráveis. De fato, os contos sobre o Ramayana sugerem uma maravilhosa auto-reflexividade. Quando Rama concorda em se exilar, ele tenta dissuadir Sita de segui-lo: ela é aconselhada que, como princesa, acostumada a todos os luxos que a vida tem para oferecer, as dificuldades de uma existência escassa e difícil na floresta não são para ela. Mas, como esposa hindu, Sita sugere que ela compartilhe de bom grado a vida de seu marido, e que neste momento crítico ela não pode abandoná-lo.

A existência de tantos Ramayanas me parece outro exemplo perfeito de quão diversa qualquer religião pode ser. Todos sabemos que o hinduísmo não é uniforme, tem muitos ramos e manifestações em toda a Índia e no mundo. Também sabemos do impacto da colonização britânica, que também transformaria a religião de várias maneiras. Mas a adaptação do Ramayana como um texto essencial, nos muitos lugares em que chegou, mostra-nos como qualquer sociedade provavelmente moldará a religião à sua imagem. Há um velho ditado no Brasil que afirma que Jesus não tem dentes no país dos desdentados. Isso mostra que em qualquer sociedade, as pessoas verão a religião como se vêem, sendo a própria religião uma fonte de repetição para as ações das coletividades. Isto dito, fica fácil entender os muitos Ramayanas, uma vez que não havia uma instituição estruturada fazendo um enorme esforço para mantê-lo uniforme, como aconteceu com a Igreja Católica e a Bíblia.

Também mostra que quanto mais forte o poder patriarcal se tornou, mais severo foi o tratamento de Sita nos textos. Toda a suspeita, punição e conclusões dela nas agora muitas histórias apontam para uma sociedade que estava começando a entender os papéis de mulheres e homens de maneira diferente, e fez um esforço para basear essa separação no divino. Uma vez que os textos refletissem esses papéis, seria válido tratar da mesma maneira uma esposa hindu e esperar os mesmos valores, virtudes e aspectos honrosos de Sita. É desnecessário dizer que isso resulta em uma tremenda pressão social sobre as mulheres e em uma violência estrutural e cultural que geralmente se torna violência direta.

Em 2011, o Conselho Acadêmico da Universidade de Delhi decidiu retirar o ensaio 300 Ramayana de A.K. Ramanujan do plano de estudos da instituição, em grande parte devido à pressão das organizações de direita. O Conselho, que lida principalmente com assuntos administrativos, achou oportuno intervir nesse caso e rejeitar o ensaio, apesar da recomendação em contrário do comitê de especialistas. O ensaio é objeto de polêmica desde 2008, quando esses grupos se opuseram a algumas das conclusões apresentadas por Ramanujan.

Essa estrutura patriarcal pode se sentir ameaçada pelas novas e muitas interpretações do Ramayana. E se algumas interpretações mostram Sita subjugando Ravana? E se ela aparecer como a fonte da força de Rama? E se o papel das mulheres na sociedade for descrito como essencial ou até maior que o dos homens? Tudo isso me parece uma desculpa para tentar ter sucesso no monopólio do pensamento, ao remover o 300 Ramayanas do plano de estudos da Universidade. Esta é uma tentativa de sacralizar e uniformizar um texto básico que não é uniforme por essência e uma religião que não é uniforme por essência. Se os alunos não puderem conhecer as muitas outras maneiras de ler e entender o Ramayana como uma fonte de estrutura social, é menos provável que ela mude.


Por Fábio Nobre (UEPB)

Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Pesquisa o campo dos Estudos para a Paz e Segurança, com foco especial para a Segurança Humana e as metodologias de estudo da Segurança Internacional. Doutor (2016) e mestre (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Compõe o comitê gestor da da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). Coordena o Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR – UEPB)

Recomenda-se a leitura de:

BHUYAN, Ragini. Ramanujan & the Ramayana. The Sunday Guardian. Out. 2011. Disponível em http://www.sunday-guardian.com/artbeat/ramanujan-a-the-ramayana.

BISWAS, Soutik. Ramayana: An ‘epic’ controversy. BBC News. Out. 2011. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-south-asia-15363181.

KUMKUM, Roy. Beyond Ramanujan and the Ramayana. Economic and Political Weekly. Vol. 46, No. 46 (NOVEMBER 12, 2011), pp. 14-16

POLLOCK, Sheldon. Ramayana and Political Imagination in India. The Journal of Asian Studies. v.52, no.2. 1993.

RAMANUJAN, A.K. Three Hundred Ramayanas: Five Examples and Three Thoughts on Translation” in Paula Richman (ed.), Many Ramayanas: The Diversity of a Narrative Tradition in South Asia (Berkeley: University of California Press)

 

RICHMAN, Paula. Many Ramayanas: The Diversity of a Narrative Tradition in South Asia. University of California Press. 1991.

Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.

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