Debates

O céu que sustenta a terra e as comunidades locais e internacional

Atlas, Shane McDonald. 2019

Por Fábio Régio Bento (UNIPAMPA / PPGRI UEPB / CEPRIR)

Quem é que sabe o que é o certo e o errado? Qual seria o governo certo? Qual seria a religião certa? A igreja certa? O partido certo? O comportamento certo? Quem teria o poder de definir o certo e o errado?

Quando terminei de redigir meu último livrinho (2018) fiquei com tais perguntas flutuando na cabeça. Minha resposta hipotética girava ao redor da expressão “poder popular”, autoridade da comunidade na sociedade e nas igrejas. Em vez de eclesiologias do poder de chefes, poderíamos migrar para eclesiologias do poder da comunidade. Em vez do poder de pastores, poder das ovelhas. No âmbito civil, em vez de poder de partidos de vanguarda, poder popular. 

Em alguns relatórios descritivos de situações de assédio moral e sexual (crime) em paróquias e movimentos da Igreja Católica, pode-se perceber que a base do assédio é eclesiológica. Uma vez que a autoridade do chefe da comunidade (padre nas paróquias e leigos em alguns movimentos eclesiais) é exaltada como sendo de origem divina, a base teológica da cultura (criminosa) do assédio moral e sexual está posta. O processo de divinização da autoridade do capo (chefe) serve de base intelectual de fundo para a prática do assédio moral e sexual, ou seja, quando se difunde a crença fabricada segundo a qual “o responsável (ou chefe) da comunidade tem a graça” coloca-se o fundamento teórico da cultura do abuso de poder moral e sexual. 

Um jovem torna-se mais sujeito ao abuso de um adulto-chefe divinizado por tal teologia da graça do que por um adulto sem tal divinização teológica. No caso do cristianismo, será que nos evangelhos emerge tal divinização fabricada da autoridade de chefes de comunidade ou tal fabricação foi uma criação da cristandade medieval, fundada no poder, e não em Cristo e cristianismo de Cristo, fundado no serviço? Segundo meu amigo exegeta italiano Alberto Maggi, especialista nos quatro evangelhos, Cristo contestou o poder e praticou o serviço, então a transformação do cristianismo do serviço em poder é obra mesmo da cristandade que praticou poder internamente e no nível global por meio do sistema colonial fundado no duplo poder civil-religioso (cruz e espada).

Em vez de confiar no poder dúbio de pastores autoproclamados ou de pastores institucionais, pode-se confiar no Bom Pastor que emerge espiritualmente na comunidade lá onde dois ou três estão reunidos no nome do amor justo, verdadeiro (Mateus 18, 20).

Assim teríamos um instrumento eclesiológico de ajuda aos instrumentos jurídicos de combate ao crime de violência eclesial praticado também em forma de poder e abuso de poder como abuso moral e sexual. A divinização dos chefes eclesiais (“eles têm a graça”) que serve de base teológica na cultura do assédio, uma vez superada pela autoridade de Cristo na comunidade, pode realmente ser um recurso teológico-jurídico válido.

No âmbito civil, a noção de autoridade da comunidade emergiu no contexto da análise do leninismo e exaltação do partido dirigista como vanguarda necessária dos movimentos socialistas, e no contexto da resposta diferente apresentada por Rosa Luxemburgo a tal questão. Para ela o movimento deveria dirigir o próprio movimento o que aproxima Rosa Luxemburgo de algumas visões anarquistas em relação à crítica do dirigismo de partido. A autoridade de vértice em vez de autoridade da base, porém, não é uma característica apenas do leninismo e do sistema centralista que se expandiu no movimento socialista internacional a partir do socialismo centralista-dirigista soviético. A democracia liberal-burguesa também é centralista-dirigista, ou seja, não é somente o fascismo e nazismo como produções mais toscas da burguesia que é centralista-dirigista. Na democracia liberal-burguesa temos três poderes estruturalmente centralistas-dirigistas: o poder judiciário, o executivo e o legislativo. Em tese, “todo poder emana do povo”, três poderes para o povo. Na prática, o povo é o caminho para se chegar a um poder separado do povo. No legislativo, em vez de democracia, temos partitocracia: povo em função dos partidos em vez de partidos em função do povo. No executivo temos uma máquina corporativa com dezenas ou centenas de cargos que funciona condicionada pelo poder econômico que atua por meio dos lobistas ou por meio de grupos de interesse que agem por meio da compra da realização de interesses. No judiciário, no Brasil, nem votos temos para juízes e promotores, mas apenas concursos e o poder judiciário organizou-se de forma tal que o corporativismo institucional transformou juízes e promotores numa casta togada separada do povo e dificilmente contestável. Então não temos autoridade da comunidade nem na direita nem na esquerda. Nem no âmbito civil nem no eclesial, onde pratica-se a exclusão das mulheres (patriarcalismo), dos negros e indígenas (racismo), dos outros seres vivos (antropocentrismo) e de orientações de gênero (homofobia).

Entretanto, no âmbito civil, a noção de autoridade da comunidade perdeu suas versões mais ingênuas depois dos espetáculos políticos públicos das dancinhas verde-amarelo que ocorreram no decorrer do processo do golpe da presidenta do Brasil. Ou seja, não basta pensar em poder popular em termos quantitativos, mas, também, qualitativos. Há quem pense que o povo quando tem liberdade sabe escolher. O problema é que a liberdade de escolha do povo é objeto de disputa de grupos econômicos, políticos que atuam por meio de instrumentos midiáticos na disputa da adesão da vontade popular para a realização de seus interesses. A capacidade de manipulação das mentes por meio dos novos instrumentos de manipulação de massa é tal que foram produzidos inclusive tais fenômenos coletivos extremamente toscos como as dancinhas políticas verde-amarelo.

Portanto, estamos no centralismo-dirigista onde os paradigmas (visão hegemônica) econômicos mandam e desmandam destruindo seres vivos de todos os tipos, e a autoridade da comunidade, poder popular, não consegue resistir a isso, mas até reproduz isso. Estamos então sem solução? A meu ver só não estamos em pior estado coletivo porque há uma força benéfica invisível que perpassa a história e nossas vicissitudes que podemos chamar de Sabedoria. Tal força real é como o vazio do espaço que sustenta a terra e nela passei a confiar mais não por falta de opção, mas por escolha lúcida, deliberada.


Fábio Régio Bento é professor associado na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), e professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI UEPB). Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade S. Tommaso D’Aquino (Roma, 1996). Bacharel em Teologia; Mestre em Teologia Moral Social pela Academia Alfonsiana da Pontifícia Universidade Lateranense (Roma, 1992). Pós-doutorado junto ao Núcleo de Estudos da Religião (NER) do PPG em Antropologia Social da UFRGS com pesquisa sobre Religião e Revolução na América Central.

Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.

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