Por Joyce Kelly Costa Silva (CEPRIR)
Resenha de livro
SMITH, Amy Erica. Religion and Brazilian Democracy: mobilizing the people of God. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
Joyce Kelly Costa Silva
[Esta resenha foi publicada originalmente em: Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 7, n. 1, 105-108. ]
Atualmente, entre as diversas perspectivas pelas quais a democracia brasileira pode ser observada, uma se tornou obrigatória: a da religião. Isso se deve, em grande medida, ao forte apoio de grupos evangélicos pentecostais ao candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro na eleição presidencial brasileira de 2018, levando-o à vitória. Nos últimos anos, o aumento do número de cristãos evangélicos no Brasil resultou em uma crescente onda de ativismo conservador de direita. Esse ativismo tem sido objeto de análise de diversos cientistas políticos em todo o mundo (Mariano e Gerardi, 2019; Almeida, 2020; Burity, 2020; Ferreira e Fuks, 2021; Layton, 2021). Dentro desse panorama, a cientista política Amy Erica Smith discute em seu livro “Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus” (tradução livre) a crescente divisão entre católicos, evangélicos e não religiosos no Brasil e o subsequente surgimento das chamadas “guerras culturais”.

A abordagem do livro é focada no ativismo do clero. Para Smith, os clérigos promovem políticas legislativas e eleitorais de maneira estratégica para promover seus próprios interesses teológicos, além de buscar ajudar seus grupos religiosos a se manterem competitivos diante do avanço do pluralismo religioso. Para a autora, duas questões desencadearam esse ativismo do clero. A primeira diz respeito ao aumento das discussões em alas da esquerda brasileira sobre questões relacionadas à sexualidade, ao gênero e aos papéis familiares. A reação dos líderes religiosos conservadores ao aumento dessas discussões foi a compreensão de políticas como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo sendo extremamente ameaçadoras para a ordem social. A segunda questão está relacionada à crescente fragmentação da seara religiosa. No Brasil, o catolicismo monolítico passou a conviver tanto com os não religiosos como com o evangelicalismo progressista. O pluralismo religioso intensifica, portanto, a competição por “almas e dinheiro”.
A obra, dividida em quatro partes e dez capítulos, parte dos seguintes questionamentos: i) como o conflito se desenvolveu frente a uma liderança partidária ausente?; ii) como as guerras culturais afetaram a democracia brasileira pós-1985?; iii) a política religiosa sustenta ou prejudica o regime democrático brasileiro que enfrenta graves desafios à sua legitimidade? Por meio de pesquisas com dados experimentais e dados quantitativos e qualitativos, grande parte deles coletados na cidade de Juiz de Fora/Minas Gerais, Smith responde a essas perguntas focando não nos partidos, mas no clero, que por vezes interage e lidera congregantes políticos no Brasil.
A primeira parte do livro, constituída por três capítulos, descreve o surgimento, em alguns cenários, das guerras culturais. As guerras culturais são “conflitos democráticos generalizados e prolongados entre grupos sociais que percebem suas visões de mundo como incompatíveis” (Smith, 2019, p. 5). No Brasil, as guerras culturais surgiram com o aumento substancial da religiosidade. Por isso, as visões de mundo conflitantes que conduzem às guerras culturais são particularmente fomentadas pelas religiões, que são definidas, de maneira geral, como um conjunto de ideias e práticas pelas quais as comunidades descrevem as forças transcendentais e agem mediante as suas prescrições. As guerras culturais, no Brasil, conforme a autora, têm duas frentes: i) entre religiosos e seculares; e ii) entre católicos e evangélicos, que são aliados em algumas ocasiões e, em outras, estão em conflito. O clero, que conduz as guerras, é composto por líderes, fiéis e políticos religiosos. São, assim, um conjunto de atores racionais que maximizam uma combinação de objetivos teológicos e objetivos institucionais.
A segunda parte do livro foca nas ideias e no comportamento do clero dentro da democracia brasileira. O comportamento do clero é moldado, em grande medida, pela necessidade de manter e expandir o número de membros em suas congregações, e reunir recursos monetários para dar seguimento ao seu trabalho. No capítulo quatro é discutido o pensamento do clero a respeito de questões teológicas e políticas. Neste tópico é possível observar diversas distinções entre católicos e evangélicos. De acordo com a autora, grupos evangélicos pentecostais discutem com mais frequência temas “de direita” como a necessidade da castidade e o “pecado da homossexualidade”. Os católicos, por outro lado, enfatizam pautas “de esquerda” como ajuda aos pobres, racismo e meio ambiente. Com relação ao processo político, líderes católicos são mais compreensivos do que evangélicos no que diz respeito à diversidade de opiniões, tanto internamente nas suas congregações quanto externamente em sociedade. Evangélicos e pentecostais têm mais desconfiança com o Estado do que os católicos. O capítulo cinco fecha a seção tratando da influência do clero sobre os congregados no que tange às questões partidárias e eleitorais. A autora afirma que líderes religiosos têm opiniões controversas sobre as eleições. Existe incentivo apartidário para ir às urnas, existe o cuidado na hora da escolha e existe o apoio explícito aos candidatos que fazem parte da religião. A grande maioria endossa a primeira e a segunda opinião, mas a pressão dos membros pode modificar isso.
A terceira parte do livro explora a resposta dos congregantes ao clero e a influência religiosa na democracia brasileira. Em geral, o nível de conservadorismo doutrinário defendido pelos líderes religiosos nos “púlpitos das Igrejas” depende do nível de relacionamento que a Igreja mantém com os seus congregantes. Quem passa mais tempo no ambiente congregacional tem mais probabilidade de ser influenciado. Todavia, a influência está longe de ser automática1. No nível do cidadão é possível observar menos polarização do que no nível do clero. Ainda assim, existe uma tendência dentro de grupos evangélicos de se tornarem cada vez mais conservadores e cada vez mais distantes do pensamento de outros grupos da sociedade. No Brasil, o envolvimento de grupos religiosos na política pode tanto melhorar quanto prejudicar a qualidade da democracia. Por um lado, o clero pode transmitir amplo apoio ao regime democrático e ao sistema político para os seus congregantes, um efeito satisfatório em um país que tem sofrido ataques antidemocráticos. Por outro lado, ao acreditar que o sistema político é abusivo contra seu grupo, padres ou pastores podem fazer com que seus congregantes parem de acreditar na democracia e na legitimidade do sistema político.

Finalmente, a quarta parte do livro analisa os resultados da pesquisa no nível representacional. Notadamente, políticos eleitos com apoio de congregações evangélicas tendem a acompanhar de perto questões-chaves, em especial o aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e políticas voltadas para as igrejas evangélicas. Além disso, o envolvimento de evangélicos na política estreita os laços do grupo com o “mundo político”. Em contrapartida, políticos evangélicos se desviam dos interesses do grupo em áreas como economia e raça. Assim, para a autora, o crescimento dos evangélicos na população brasileira não se configura necessariamente em poder evangélico nas urnas, muito menos em representação evangélica nos centros de poder. Contudo, dado o atual cenário, o apoio do clero à democracia e às guerras culturais impulsionadas pelo mesmo, deve ser acompanhado de perto, pois pode ou reduzir o entusiasmo por opções abertamente autoritárias (e assim ser um elemento chave para a estabilidade democrática no Brasil) ou se tornar uma ameaça à própria existência da democracia brasileira.
Em suma, o livro fornece uma apurada explicação do atual período político e social do Brasil e contribui de maneira ampla para a abordagem sobre a influência mútua de religiosos na política e no conflito eleitoral no país. A abordagem focada no clero é o grande diferencial do livro, visto que a grande maioria da produção acadêmica sobre esta temática concentra-se nas questões partidárias em algumas regiões da África e nos Estados Unidos, como os trabalhos de Bob (2012), Kaoma (2014), Ang e Petrocik (2012), Larsen, Engeli e Green-Pedersen (2013), Grzymala-Busse (2015) e de Studlar e Burns (2015).
Referências
ALMEIDA, Ronaldo de. The broken wave: Evangelicals and conservatism in the Brazilian crisis. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 10, n. 1, p. 32-40, 2020. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/708704. Acesso em: 03 mar. 2021.
ANG, Adrian; PETROCIK, John R. Religion, Religiosity, and the Moral Divide in Canadian Politics. Politics & Religion, v. 5, n. 1, p. 103-132, 2012. Disponível em: doi:10.1017/S1755048311000654. Acesso em: 03 mar. 2021.
BOB, Clifford. The global right wing and the clash of world politics. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2012.
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FERREIRA, Matheus Gomes Mendonça; FUKS, Mario. O hábito de frequentar cultos como mecanismo de mobilização eleitoral: o voto evangélico em Bolsonaro em 2018. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, n. 34, p. 1-27, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n34/2178-4884-rbcpol-34-e238866.pdf. Acesso em: 03 mar. 2021.
GRZYMALA-BUSSE, Anna. Nations under God. Princeton: Princeton University Press, 2015. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 7, n. 1, 105-108.
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LARSEN, Lars Thorup; ENGELI, Isabelle; GREEN-PEDERSEN, Christoffer. How Religion Becomes Political. A Comparative Study of Religion and Morality Policy. In: Proceedings of the 109th American Political Science Association Annual Meeting, 2013. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2300872. Acesso em: 03 mar. 2021.
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STUDLAR, Donley T.; BURNS, Gordon J. Toward the permissive society? Morality policy agendas and policy directions in Western democracies. Policy Sciences, v. 48, n. 3, p. 273-291, 2015. Disponível em: https://strathprints.strath.ac.uk/54034/. Acesso em: 03 de mar. de 2021.
Por Joyce Kelly Costa Silva (Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba), membro do Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (CEPRIR).
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