Por Fábio Régio Bento (UNIPAMPA/CEPRIR)
*Redação concluída em 1 de dezembro de 2022
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Resumo
As tentativas no Brasil de desestabilizar a normalidade democrático-eleitoral antes, durante e depois do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, pela estratégia de desmoralização da credibilidade técnica das urnas eletrônicas, pelos acampamentos contra a legalidade articulados nacionalmente na frente de quarteis, pelo terrorismo dos bloqueios praticado nas rodovias nacionais, mostram que a expressão “Estado Democrático de Direito” emerge como relevante, indicando ser expressão descritivo-normativa, socialmente protetora das liberdades constitucionais e não mera abstração conceitual para fins de cognição restrita ao âmbito acadêmico.
No presente artigo queremos revisitar algumas caracterizações clássicas sobre Estado no contexto da tensão eleitoral no Brasil de 2022 partindo da hipótese segundo a qual liberalismo político e igualdade social não são posições práticas contraditórias, mas que podem ser interpretadas e praticadas como posições coletivas colaborativas e complementares. A questão, mesmo sendo antiga, emerge como urgente no contexto eleitoral brasileiro de 2022, de ameaça à legalidade eleitoral, sendo assim um artigo mais sobre a relevância e nuances atuais de um antigo e sempre novo tema, do que sobre o tema prático-teórico em si clássico.

Introdução
Um médico estuda profissionalmente corpos físicos, enquanto cuida também de seu corpo físico dado que não está separado do corpo que estuda. Então ele tem uma posição ao mesmo tempo analítica e cuidadora em relação ao corpo físico.
No mesmo sentido, um cientista político, um sociólogo, um internacionalista analisa o corpo político, local e internacional e, não estando separado do corpo político que estuda, também cuida do corpo político junto com todos os cidadãos. Então ele tem uma posição ao mesmo tempo analítica e cuidadora em relação ao corpo político.
Cuidar do corpo político envolve análise, descrição e, também, identificar escolhas consideradas como benéficas para o corpo político, o melhor para o corpo político, assim como identificamos o que seja o melhor também para o corpo físico. Descrição e prescrição de tratamentos, analise descritiva, interpretativa e prescritiva.
O ambiente político-coletivo geralmente utilizado para a descrição de situações coletivas e prescrição de tratamentos políticos medicamentosos para o corpo político local são as assembleias nacionais constituintes. No caso do Brasil, estamos sob o tratamento organizativo e prescritivo da Constituição de 1988, então é essa a referência “medicamentosa” que estamos utilizando de forma coercitiva para a manutenção da saúde do corpo político nacional, também em suas nuances eleitorais.
A partir de tal referência, vamos destacar alguns pontos fáticos que consideramos relevantes para a manutenção da saúde do corpo político brasileiro nesse período de ataques à legalidade democrática pela não aceitação da regra segundo a qual quem ganha uma eleição, ganha o direito de governar por quatro anos, e quem perde uma eleição, ganha o direito de fazer oposição institucional, mas não ganha o direito de conspirar contra a legalidade democrática, não ganha o direito de usar sua liberdade política para conspirar contra a legalidade democrática que sustenta a liberdade política de todos e não apenas a dos grupos populistas civis, militares e religiosos de ocasião.
Conspirar contra a legalidade democrática em caso de derrota eleitoral não é liberdade de expressão, mas ação coletiva imoral e ilícita do ponto de vista constitucional decorrente de um desvio hermenêutico culposo e/ou doloso, dependendo das motivações e ações dos vários sujeitos conspiradores ativos (“patriotas” financiadores, planejadores, propagadores civis, religiosos e militares de mentiras em redes sociais para fins golpistas) e conspiradores executores, como os “patriotas” de acampamento em frente aos quarteis, pedindo intervenção militar, para salvar o Brasil do que chamam de “comunismo”.
Depois de Geraldo Alckmin considerado “comunista”, lá pela segunda metade de novembro de 2022, conforme vasta documentação jornalística, o espectro do “comunismo” foi ampliado e passaram a classificar também alguns generais como “vermelhos”, chamando-os pejorativamente de “melancias”, verdes por fora e “comunistas” por dentro, segundo a mentalidade dos “patriotas” revoltados agora também com as forças armadas pela ausência de um golpe militar que estaria tardando a chegar.
Quem é, porém, que forma ou deforma o pensamento desses “patriotas” com tal anticomunismo totalmente fora de época? Provavelmente padres, freis e pastores de redes sociais televisivas, escritas e auditivas. Por isso nos surpreendemos ao ver a tia da igreja, o tio da paróquia, a vizinha do culto orando na frente dos quartéis pela liberação de um “comunismo” que eles nem sabem bem o que seja. Estão ali levados por pregações religiosas que conquistaram seus corações com sermões que misturam promessas de certeza e segurança na volta a um passado “maravilhoso” e “estável” que inventaram, junto com a pregação que vê comunismo em tudo, até nos generais “melancia”. E se você for tentar dialogar sobre isso com o tio e a tia da paróquia ou do culto, tentando relativizar o discurso dos pregadores de batina, com fala mansa, e dos pastores da gritaria, talvez não seja escutado justamente porque a tia e o tio da paróquia já classificaram também você como comunista.
Entretanto, a liberdade resiste às tentativas de clamor populista por golpes via acampamentos de conspiradores crentes, que oram para que o seu “deus” os ajude a acabar com a liberdade política, e via terrorismo nas estradas praticado pelos que transformaram seus caminhões em armas de morte contra a liberdade política e de movimento, chamando tal liberdade de impor terror de “liberdade de manifestação”, da mesma forma como as milícias digitais chamam sua liberdade de mentir e difundir mentiras de “liberdade de expressão”.
Nesse sentido, diante de uma liberdade que resiste, vamos começar nossa reflexão destacando o liberalismo político e sua manifestação político-jurídico-institucional nas constituições democráticas como marco civilizatório. Liberalismo político como fundamento societário do qual não se pode abrir mão, de onde emerge um tipo de fé coletiva na democracia que decorre da análise histórica de sua imprescindibilidade.
1. Estado dique
Algumas conquistas da burguesia liberal foram elogiadas pelos autores do Manifesto Comunista, o jornalista Marx e o industrial Engels, para os quais a burguesia liberal “desempenhou na história um papel revolucionário”, “criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos” (MARX; ENGELS, 2021). Afinal, ela conseguiu superar algumas limitações da ausência de liberdade imposta pelo antigo regime. Em muitas ocasiões, de fato, como jornalista, Marx trabalhou lado a lado com liberais burgueses na tentativa de superar as restrições impostas à liberdade exterior pelo antigo regime monárquico. Entretanto, a valorização explícita, sem ambiguidades hermenêuticas, do liberalismo político no âmbito dos intelectuais da área geral e muito plural conhecida como “área socialista” vai ser claramente destacada pelo italiano Carlo Rosselli, assassinado em 1937 por agentes fascistas. Para ele não há contradição entre liberalismo político e o que chamou de socialismo liberal.
De fato, no clássico Socialismo Liberal, escrito no cárcere entre 1928-29, ele não defendeu uma posição, digamos, radical, mas moderada, e mesmo assim foi assassinado pelos fascistas que, também no Brasil, combatem como sendo “comunista” qualquer posição contrária às suas, mesmo se moderada.
Rosselli destaca que os movimentos populares são continuadores e ampliadores dos movimentos liberais. Não rejeitam as conquistas liberais de liberdade, mas partem delas. Identifica assim solução de continuidade e não de descontinuidade entre liberalismo político e socialismo liberal. Solução de continuidade entre os movimentos liberais burgueses e os movimentos liberais populares, cujo objetivo não seria a negação das liberdades políticas conquistadas pela burguesia revolucionária e reformadora em relação ao antigo regime, mas a expansão dessas conquistas liberais para as classes trabalhadoras, camponeses, movimentos populares. Liberalismo político como base permanente dos movimentos populares, focados na expansão da liberdade (ROSSELLI, 1997).
O socialismo liberal de Rosselli não nega o liberalismo político, mas parte dele tendo-o como referência permanente dos movimentos populares de expansão das liberdades exteriores, daqui a expressão socialismo liberal como socialismo de base liberal permanente. Ao contrário das posições iliberais de esquerda e de direita, Rosselli não quer usar a democracia para acabar com ela, mas para torná-la melhor.
Sobre isso, tomando a distinção analítica de Norberto Bobbio (1994) sobre esquerda e direita, a primeira estaria mais atenta à igualdade (na diversidade, sem uniformidade) enquanto que a segunda, mais atenta à liberdade. Entretanto, na proximidade do centro, esquerda e direita dialogam sobre essa conjunção entre liberdade e igualdade na diversidade, entendida como expansão da liberdade. A dificuldade é o diálogo entre centro-esquerda e centro-direita com as posições iliberais de extrema-esquerda e extrema-direita, dado que a extrema-esquerda despreza o liberalismo político classificando-o como mera “democracia burguesa”, como se as conquistas de liberdade exterior do liberalismo político fossem defeitos políticos de classe e não uma conquista civilizatória mesmo se, de fato, ainda restrita a classes e grupos, mas cujo problema está na sua ainda não expansão e não nela mesma. Por sua vez, a extrema-direita leiga e religiosa, também ela iliberal, rejeita o liberalismo político, rejeita o Estado Democrático de Direita, sendo populista, golpista, militar-intervencionista, messianista e fundamentalista do ponto de vista religioso, combatendo tanto a extrema-esquerda como também as posições de liberdade com igualdade na diversidade situadas no âmbito da movimentação política entre centro-esquerda e centro-direita.
A posição rosselliana, ao contrário, valoriza o liberalismo político, sem o associar, porém, ao capitalismo e liberalismo econômico, como o fazem os neoliberais. Rosselli valoriza o liberalismo político como fundamento da possibilidade metodológica de expansão da liberdade exterior de alguns para a liberdade exterior para a maioria. Prescreve, assim, tal liberalismo político como valor permanente para o corpo político.
Diferente disso, extrema-esquerda e extrema-direita desprezam o liberalismo político, acariciando afetiva e efetivamente posições autoritárias.
Liberalismo político, portanto, como sistema de garantia da liberdade exterior concebida como valor universal, garantida constitucionalmente. Liberalismo político como movimento prático-teórico situado no tempo-espaço voltado para o alargamento da liberdade exterior para mais sujeitos coletivos e movimento criador, também, de diques para a contenção das reações adversas dos autoritarismos populistas leigos e/ou religiosos. Socialismo liberal como herdeiro e ampliador de tal liberalismo político.
Do antigo regime, de liberdade exterior apenas para uma minoria nobre, aristocrata, com seus títulos de duques, barões, se vai para o sistema da liberdade exterior reivindicado pela burguesia revolucionária (francesa) e pela burguesia reformadora (inglesa) com a supressão do antigo regime na França e sua reformulação com perda de hegemonia na Inglaterra. O socialismo liberal se insere nessa história da expansão política e econômica da liberdade exterior. Rosselli não pretende eliminar tal conquista política, mas expandi-la entre os movimentos populares.
Emerge assim uma visão mais ampla de soberania, popular, voltada para a superação da soberania de classe, reconhecendo os movimentos populares dentro, e não fora do moto revolucionário liberal segundo o qual “todo poder emana do povo”, indicando a necessidade de alargar por dentro sua abrangência externa.
Entretanto, mesmo se tal abrangência ainda não atingiu o esperado, do ponto de vista eleitoral-constitucional, tecnicamente falando, o poder emana mesmo do povo também nas sociedades de liberdade limitada. Ganha quem obtém a maioria dos votos nas regras praticadas de sistema proporcional ou majoritário com dois turnos ou um só. Evidente que os processos eleitorais podem sofrer pressões, mas tecnicamente ocorre a regra do poder popular nas eleições em todos os níveis constitucionalmente elencados.
Assim, o poder que antes era de um só, ou de poucos, de uma classe, de um gênero, no liberalismo político eleitoral se torna soberania popular eleitoral, fundada na legalidade constitucional. Como protegê-la, porém, das ameaças dos populismos golpistas? Como evitar que a soberania popular degenere em golpismo populista? Pela identificação clara do local de residência da soberania.
2. Liberalismo político. Onde reside a soberania?
A soberania é do povo, num dado território, que a delega a um governo por um período específico de tempo previsto constitucionalmente. Por isso, a passagem da “faixa” de presidente, de prefeito, governador, e a relação de bom humor ou não com tal ritual fundado na legalidade, já manifesta a diferença entre líder popular legalista e líder populista, tendencialmente golpista, que às vezes só não realiza interesses golpistas por encontrar no dique da legalidade constitucional um obstáculo à realização de tais interesses conspiratórios de seus agrupamentos populistas.
Onde, então, na democracia, reside a soberania? No povo, no território ou no governo (BONAVIDES, 1999)? Na legalidade democrática. A expressão Estado Democrático de Direito indica, entre outras coisas, que o lugar de residência da soberania é a legalidade democrática, o aparato jurídico-político-constitucional que prevê regras (coercitivas) de funcionamento e defesa também da legalidade eleitoral como defesa da soberania popular em relação ao populismo que, em nome da vontade de grupos exacerbados (o populismo se funda na exacerbação de sentimentos e vontades) tende a aceitar apenas os resultados eleitorais que lhe sejam favoráveis, rejeitando a vontade da maioria, em nome da vontade de uma quase maioria derrotada eleitoralmente que, justamente pelo seu iliberalismo, busca meios de reverter derrotas com golpes legislativos ou militares. Então a soberania é do povo, mas tal soberania não reside no ar, nos sentimentos, nas vontades exacerbadas dos que querem porque querem. A soberania popular reside na legalidade democrática fundada nas assembleias populares constituintes.
Ao contrário da soberania popular, que é liberal e legalista, a falsa soberania populista, iliberal e golpista, não reside na legalidade democrática, mas no poder econômico dos financiadores de conspirações que desprezam a legalidade eleitoral quando ela não coincide com seus interesses.
No Brasil, o dique da legalidade está resistindo à pressão do populismo golpista, sobretudo, pelo trabalho do poder judiciário, principalmente pela ação de legalidade democrática praticada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Ficando assim manifesto que a célebre independência dos três poderes, executivo, legislativo, judiciário, pode funcionar como dique de proteção contra as tentativas de abuso populista contra a soberania popular, que podem vir de qualquer um dos três poderes, contando com uma espécie de cálculo de probabilidade ético-constitucional segundo o qual ao menos um dos três poderes em circunstâncias diferentes irá servir como proteção da legalidade em caso de ataque golpista populista.
Evidente que há sempre líderes mais ou menos populares nos processos eleitorais. A diferença entre líder popular e líder populista está no reconhecimento, valorização e defesa da legalidade democrática. Essa diferença também ficou clara no Brasil em relação a Lula e Bolsonaro. O primeiro, um líder popular que defendeu e defende a legalidade democrática. Quando investigado e preso, reconheceu e respeitou até mesmo o sistema legal que o deixou (injustamente, conforme reconhecimento jurídico disso, devido à ação de uma magistratura parcial, ou seja, imoral e ilegal) sem liberdade exterior por longo tempo; o segundo, um líder populista da direita corporativa e cristã que passou quatro anos ameaçando a legalidade democrática, servindo-se para isso do uso político da imagem das forças armadas, que utilizou como se fossem seus vigilantes privados armados, contando com o apoio público de alguns generais midiáticos que reforçavam via redes sociais tais ameaças instrumentais praticadas pelo capitão-presidente por meio de publicações também elas de caráter ameaçador de tipo golpista.
Não estamos aqui sustentando que Lula seja um anjo político caído do céu, claro que não. Apenas destacando que, do ponto de vista da legalidade democrática, não usou, por exemplo, a imagem das forças armadas para ameaçar a democracia como se fosse um seu brinquedo pessoal, ao contrário de Bolsonaro que a usou como aquele menino que quer impor como deve ser o jogo por se considerar o suposto dono de uma bola que nem sua é. Do início ao fim de seu mandato ficou manifesta essa tentativa de junção afetiva entre populismo bolsonarista e aquela parte das forças armadas que se prestou até mesmo midiaticamente a reduzir a imagem das forças armadas a vigilantes políticos armados de Bolsonaro e do bolsonarismo, em vez de permanecerem no lugar institucional de forças de Estado.
Entretanto, na democracia legal a soberania é popular, mas não é populista. A soberania populista é tendencialmente golpista porque sua força reside na vontade exasperada de uma parcela da população, e não no respeito político explícito pela legalidade constitucional. A soberania popular, em suma, ao contrário da populista, não é apenas volitiva, mas legalista. Os eleitores derrotados em 2018 não se comportaram como os eleitores derrotados em 2022. Em 2018, a resposta foi legalista. Em 2022, a resposta foi tão golpista como a dos que, ao serem derrotados pela presidenta Dilma, no dia seguinte já começaram a conspirar contra a legalidade e organizar o golpe legislativo de 2016 que chamaram de “impeachment”.
Nas eleições de 2022, porém, o movimento golpista foi mais explícito, manifesto que em 2016. O populismo golpista, que se apropriou indevidamente do verde-amarelo como se fosse seu, lançou ataques conspiratórios que vieram de muitos lugares: do uso político da religião; da suspeita (em investigação) de colaboração da polícia rodoviária federal como cabo eleitoral de Bolsonaro, impedindo eleitores declaradamente de Lula de chegarem às urnas; das recorrentes ameaças à legalidade democrática praticadas pelo bolsonarismo por meio da desmoralização sistemática das urnas eleitorais; do uso recorrente de ameaças de intervenção militar dando a impressão que parte das forças armadas teriam se tornado forças bolsonaristas apoiadoras afetivas (mesmo se não efetivas) dos “patriotas” acampados em frente aos quarteis e ali se sentindo afetivamente em casa. E tal imagem pró-golpismo ficou fortalecida quando setores das forças armadas não rejeitaram, mas acolheram afetivamente tais manifestações conspiratórias como se isso fosse liberdade de expressão, recomendando que as manifestações fossem pacíficas, como se um acampamento conspirador em frente a quarteis não fosse em si violento, criminoso em relação à legalidade democrática.
Diante de “patriotas” civis implorando golpe militar em preces, um general-político respondeu negativamente explicando que o golpe não seria possível pois isso não ficaria bem diante da comunidade internacional, uma resposta ambígua que abriu margem para a interpretação segundo a qual tal ausência de golpe foi motivada não tanto pelo respeito da legalidade constitucional, interna, mas pela previsão de repercussão negativa junto à comunidade internacional.
Em tal caso, o dique de resistência à agressão iliberal, portanto, teria vindo da comunidade internacional, e não do sistema interno, frágil, sempre dependente do humor variável também dos militares e dos confrontos internos nas casernas entre fardados legalistas e fardados golpistas. Uma ambiguidade política explorada pelo capitão-presidente e acolhida de bom grado pelos setores ideológicos e de viés golpista das forças armadas.
Bolsonaro, de fato, passou quatro anos atormentando a população que não fazia parte de seu rebanho eleitoral com ameaças frequentes, sobretudo na proximidade do feriado de sete de setembro, de intervenção militar, dando a impressão que as forças armadas de Estado seriam, de fato, forças ideológicas a serviço do capitão-presidente e do populismo bolsonarista.
Ficou evidente nas manifestações golpistas no Brasil que a imagem de poder político mais amada, mais estimada pelos “patriotas” iliberais não é a do executivo, nem a do legislativo, nem a do judiciário, nem a do quarto poder, midiático, mas a do poder militar que, por sua vez, não rejeitou tal estima conspiratória, apenas pediu que não fossem “violentos” em suas manifestações públicas conspiratórias contra a legalidade constitucional em frente aos quarteis.
Como, porém, cuidar do corpo político quando ele é agredido pelo câncer do golpismo “patriota”? Assim como o corpo físico adoece, o corpo político também adoece e também precisa de tratamento. No caso da doença grave do golpismo, o tratamento medicamentoso em prol da relativa tranquilidade e estabilidade democrática no Brasil talvez dependa também de uma profunda revisão da imagem que as forças armadas produziram de si e da imagem que foi produzida sobre ela pelos “patriotas” iliberais. Será que ali são estudados autores clássicos da ciência política ou coisas parecidas com os velhos manuais da guerra fria com dicas teórico-práticas para combater o “comunismo”? Há espaço, nas três forças, de discordância para os que não se sentem bem sendo tratados como “coringa” político de golpismo “patriota”? Será que ainda há quem trate como “subversivos” os cidadãos que trabalham pela igualdade econômica e como “cidadãos de bem” os ricos, brancos, de classe média e simpatizantes de teorias neofascistas?
Além desse, outro setor a ser analisado com atenção pedagógico-constitucional no Brasil em prol da tranquilidade e estabilidade democráticas no nível de tratamento político-medicamentoso do corpo político é o setor populista-religioso, com a verificação das denúncias de perseguição religiosa praticadas por freis, pastores e padres que usaram de seu poder de púlpito para praticar abuso de poder, assédio moral em forma de assédio eleitoral pró-bolsonarismo em templos, igrejas e redes sociais.
Até aqui refletimos sobre a relação entre liberalismo político e iliberalismo civil, militar, corporativo, religioso, e a proteção político-legal que o Estado dique oferece à liberdade exterior por meio do sistema da legalidade democrática.
A parte sucessiva será dedicada à relação de não afinidade entre liberalismo político e capitalismo.
3. Estado, liberalismo político e capitalismo
Ao contrário do que possa parecer, a crítica mais dura contra o capitalismo, entendido como sistema fundado na centralidade do lucro, não veio da esquerda, mas do liberal Max Weber. Há quem diga que as posições de esquerda tenham criticado mais a gestão burguesa do capitalismo do que o capitalismo em si, algo como a busca da transformação de capitalismo de classe em capitalismo de Estado e de partido (comunista). Como ocorre de forma parcial, por exemplo, no “socialismo de mercado” da China, onde há capitalismo, mas gerido pelo Estado-Partido Comunista Chinês. Então existe essa dúvida sobre a ambiguidade na relação com o capitalismo entre partidos e Estados próximos ao universo amplo chamado de “esquerda”. Teriam rompido com o capitalismo ou apenas com o capitalismo de classe?
A crítica do capitalismo em Max Weber, entretanto, é mordaz, não deixa pedra sobre pedra, é sem ambiguidade. Em Weber, a suposta proximidade entre liberalismo político e capitalismo é uma junção artificial.
A rejeição de Weber do capitalismo emerge no final de sua obra clássica A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, onde Weber (2004) afirma que o sistema fundado na centralidade do lucro não é como um leve manto, uma capa colocada sobre as costas, que podemos tirar a qualquer momento, quando quisermos, mas “uma jaula de aço” da qual dificilmente conseguiremos nos livrar. Weber é um liberal romântico, valoriza arte, poesia, literatura, música, escreveu sobre sociologia da música. Para ele, um humanista, não se pode colocar a centralidade do dinheiro, do lucro, como referência hegemônica na organização social, como ocorre, de fato, no capitalismo, sistema centrado na hegemonia do lucro. Ele trata o dinheiro como meio de vida e não como paradigma central da vida. Dessa forma, para o liberal Weber, não há harmonia entre liberdade e capitalismo, mas ruptura, prisão. Assim, superar o capitalismo significa sair da jaula de aço, que pode ser uma jaula burguesa de aço (capitalismo de classe) ou uma jaula comunista de aço. Centralidade do lucro, do dinheiro, do mercado não são paradigmas liberais para Weber, mas restrições iliberais à liberdade liberal. Então a posição neoliberal otimista, meio ufanista até que associa liberalismo e capitalismo como manifestação de liberdade, não é uma posição liberal, mas antiliberal, iliberal, “jaula de aço” da liberdade aprisionada no sistema fundado na hegemonia do lucro.
E aqui retornamos a Carlo Rosselli, também ele liberal, socialista liberal, para o qual o socialismo liberal não rejeita, mas aprecia, protege, amplia, expande o liberalismo político, dissociado do sistema prisional centrado no lucro. O que nos remete à seguinte pergunta: qual seria a característica mais especificamente econômica do liberalismo político? Como ampliar o sistema da liberdade política exterior também no âmbito da ampliação da liberdade econômica exterior para a maioria? Como fazer que o liberalismo político seja também liberalismo econômico? E com qual método?
Dado o alto custo de vida não só humana das rupturas revolucionária e guerras, sobretudo as guerras capitalistas mundiais de conquista de novos mercados para as corporações associadas a Estados iliberais, e dada a dificuldade de realizar os projetos societários contidos nas rupturas revolucionárias, talvez já tenha passado da hora de os revolucionários abandonarem a crença nas revoluções, trocando a posição revolucionária pela evolucionária, trocando a crença imediatista na ruptura pela prática do gradualismo firme, decidido e, principalmente, sem ódio, veneno antigo e sempre devastador para os corpos físicos e políticos, mas que ainda é adorado com devoção como se fosse remédio salvador.
Trocar a via revolucionária pela via evolucionária, pedagógica, do gradualismo, para realizar o quê? Em primeiro lugar para a manutenção do liberalismo político, considerando o Estado Democrático de Direito como ponto de não retorno. Fé na Democracia como referência sem retorno pela avaliação positiva dos benefícios do liberalismo político também enquanto “Estado dique” de proteção da liberdade exterior para a maioria contra os ataques dos populismos. Estado dique que também é Estado laico, que não significa laicismo, desvalorização da religião, mas laicidade, garantia legal, proteção institucional do direito de crer e de não crer aos crentes e não crentes de todas as crenças.
Reconhecimento, portanto, do liberalismo político como fundamento permanente para a proteção e expansão da liberdade, como o fez o socialista liberal, ou liberal socialista Carlo Rosselli. Como o fez o liberal humanista Max Weber que não acomunou liberalismo e capitalismo. A partir desse ponto de não retorno, quais seriam as relações entre liberalismo político e economia?
Conclusão – Liberalismo político e cooperativismo econômico
Tendo como ponto de partida a valorização e proteção institucional da conquista civilizatória do sistema constitucional da liberdade exterior, como agir para a sua expansão e para qual direção em relação à questão da liberdade política associada à liberdade econômica para a maioria?
Ora, isso nos remete à questão da propriedade privada, mas não da propriedade privada de qualquer coisa, mas à questão da propriedade privada dos meios de produção.
Há projetos e programas de economia solidária, com foco na comunhão dos bens produzidos, mas que não entram no âmbito do tema quase tabu dos meios de produção dos bens produzidos. Podemos compartilhar uma parte do que foi produzido, mas sem tocar no sistema de propriedade privada dos meios de produção que é causa de ausência de liberdade econômica, causa de divisão entre quem manda e quem obedece no trabalho, entre quem emprega, porque é o proprietário do meio de produção, e quem é empregado, porque não é proprietário do meio de produção.
Quem é empregado, ganha um salário e quem emprega, ganha o lucro produzido também com o trabalho de quem empregou. A relação de trabalho fundada na propriedade privada dos meios de produção sustenta a ausência de liberdade, e tal relação não é natural, mas cultural, criada e mantida há séculos e ainda não revisada pela ampliação da liberdade para a maioria. A conservação do liberalismo político não tem como meta a conservação da desigualdade econômica, mas sua gradual superação. E como superar a desigualdade econômica ou ao menos amenizá-la? Em primeiro lugar destacando que economia e capitalismo não são palavras sinônimas, apesar do neoliberalismo econômico sustentar tal suposta conjunção.
A economia não está naturalmente vinculada à ditadura da hegemonia do lucro como sistema de vida econômica, nem ao dogma da propriedade privada dos meios de produção. Uma economia empreendedora de empresa também não está necessariamente vinculada ao capitalismo, apesar de efetivamente o estar, por estarmos dentro do sistema da ditadura do lucro que aprisiona, usando a expressão de Weber, quem ali está, também as próprias empresas empreendedoras cuja criatividade está condicionada pelo guarda-chuva iliberal da lógica do lucro e pelo dogma-tabu da propriedade privada dos meios de produção.
Tentar sair disso por uma obra pedagógica, dialógica, educacional, política, gradual, evolucionária de libertação da economia da opressão do capitalismo por meio do liberalismo político pode soar como utópico, mas é a única chance de superarmos o estado econômico apocalíptico no qual estamos, caracterizado pela destruição do planeta praticada por essa máquina mortífera que é a ditadura do lucro na cidade e no campo, onde a terra, com os seres vivos, são assassinados também por meio de banhos tóxicos lançados cotidianamente por aviões letais nos infindos espaços de monocultura.
Estaríamos aqui falando de “comunismo”? Não. Transferir a centralidade do lucro de classes para partidos e Estados não supera o problema apocalíptico da devastação do mundo pela ditadura da hegemonia do capital.
Podemos citar aqui duas possibilidades, entre tantas, por razões de síntese: a possibilidade salarista (de salário) e a possibilidade cooperativista-ecológica. Duas possibilidades compatíveis com o Estado Democrático de Direito, compatíveis com a ampliação da liberdade a partir do liberalismo político.
Pelo salarismo, as desigualdades sociais são gradualmente diminuídas. É a experiência imperfeita, mas melhor do ponto de vista da maior liberdade econômica alcançada por meio da liberdade política, como ocorre em países socialdemocratas, e que, mesmo se moderadas, são combatidas com afinco pelo iliberalismo do neoliberalismo. Pelo cooperativismo-ecológico, em vez, busca-se uma forma associada de produção com o compartilhamento do meio de produção em relação ao que se quer produzir. Evidente que, para o iliberal neoliberalismo, o cooperativismo fracassou. Anunciam isso da mesma forma como os populistas golpistas desmoralizam as urnas eletrônicas, como se cooperativismo fosse coisa do passado, e praticar a letalidade da destruição do planeta em nome do lucro fosse a grande novidade devocional a ser conservada.
Não será fácil superar a ditadura da hegemonia do lucro nem passar do sistema de propriedade privada dos meios de produção ao sistema de propriedade comunitária, cooperada dos meios de produção. Mas não há como proteger o planeta e qualificar a vida econômica sem entrar nesse ponto profundo, que não é comunista, estatalista, mas civilizatório, comunitário.
Os grandes proprietários rurais e urbanos usarão a contestável ideologia do mérito e do sacrifício para justificar seus privilégios econômicos, assim como os aristocratas do antigo regime o fizeram para tentar justificar seus privilégios de liberdade exclusiva.
A reação às mudanças foi e continua sendo forte. Mas pensar o que parece impossível foi o que fizeram os movimentos liberais em meio ao iliberalismo do antigo regime.
O caminho das mudanças, porém, é pela via da estabilidade democrática e sua expansão, ampliação. É pela via pedagógica da educação libertadora. Criticado pelos comunistas no passado e pelos “patriotas” de hoje, que o chamam de “comunista”, Paulo Freire continua muito atual e as críticas que recebe, de onde recebe, mostram isso. O pedagogo brasileiro nunca foi comunista, mas um brasileiro que queria uma pátria para todos, pátria amada por todos e que ama a todos.
Então, a partir dos espaços do liberalismo político, no território de soberania do Estado Democrático de Direito, buscar, gradualmente, com firmeza e sem ódio a ampliação da liberdade exterior também no terreno da economia vital para todos os seres, não somente para os seres humanos.
Economia vital, para todos os seres, para além da economia letal. Economia vital que não quer que todos sejam milionários, nem consumistas. Economia vital como sobriedade econômica num mundo com recursos limitados, rejeitando o consumismo fundado num bem-estar letal para o planeta, e ilusório do ponto de vista da felicidade na comunidade, como indicam consumo de drogas e suicídios nas nossas sociedades tipicamente anômicas, com escassa sensação de acolhimento comunitário.
Economia vital como forma de equilíbrio entre todos os seres, busca de libertação para todos os seres assassinados cotidianamente pela ditadura do lucro nas florestas, nos rios, nos mares. Podemos passar assim da visão restrita de humanidade para a visão ampla de Seridade. A tão necessária comunidade da Seridade, com liberdade para todos os seres e, de preferência, também com amor, ou ao menos sem ódio.
Fábio Régio Bento é professor associado na Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade S. Tommaso D’Aquino (Roma, 1996). Bacharel em Teologia; Mestre em Teologia Moral Social pela Academia Alfonsiana da Pontifícia Universidade Lateranense (Roma, 1992). Pós-doutorado junto ao Núcleo de Estudos da Religião (NER) do PPG em Antropologia Social da UFRGS com pesquisa sobre Religião e Revolução na América Central.
Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.
Referências
BOBBIO, Norberto. Destra e sinistra – ragioni e significati di una distinzione politica. Roma: Donzelli editore, 1994.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Geral do Estado. São Paulo, Malheiros, 1999.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2021.
ROSSELLI, Carlo. Socialismo Liberal. Rio de Janeiro: Instituto Teotônio Vilela e Jorge Zahar Editor, 1997.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
