Por Irla Menezes (UEPB)
A Copa do Mundo da FIFA 2022 chegou ao fim, mas já pode ser marcada na história como uma das mais politicamente importantes das últimas edições. Marcada por protestos e muita agitação nas redes sociais, a Copa do Qatar se transformou num grande palco para que pautas políticas protagonizassem as partidas junto aos jogadores. Assim, uma das mais marcantes partidas desta edição ganhou destaque não somente pelo talento das equipes, mas como os adversários fizeram com que pautas políticas também fossem colocadas em jogo.
Ao som de vaias, torcedores respondem à comemoração do kosovar Xherdan Shaqiri, que joga pela Suíça, em partida contra a Sérvia na Copa do Mundo do Catar. Em 2018, os mesmos adversários se enfrentaram em Kaliningrado, durante a Copa do Mundo da Rússia. Tais partidas se tornaram memoráveis não somente pelo desempenho das equipes, mas porque foram palco para que antigas tensões também entrassem em campo. Na Rússia, Shaqiri e seu companheiro de equipe Granit Xhaka comemoraram seus gols contra os sérvios fazendo o símbolo da águia negra de duas cabeças, que está estampado na bandeira da Albânia. No Catar, Shaqiri pediu para que torcedores sérvios fizessem silêncio durante uma partida marcada por xingamentos, acusação de racismo, bate-boca com jogadores reservas e, surpreendentemente, 11 cartões amarelos advindos da confusão. A Suíça conseguiu eliminar a Sérvia, mas o que aconteceu no dia 02/12/2022 foi apenas mais um exemplo de que um gol pode se tornar um ato político, e que uma partida no Catar pode carregar consigo as consequências de um gesto feito em um jogo na Rússia e uma história que começa na antiga Iugoslávia.

Desse modo, para entendermos a dimensão dos gestos de Shaqiri e Xhaka, precisamos voltar no tempo e buscar explicações na história da Iugoslávia, um “país’’ que abrigava diversas unidades e etnias e foi considerado local do estopim para a I Guerra Mundial, quando um nacionalista sérvio assassinou uma figura do Império Austro-Húngaro na Bósnia, demonstrando como a região era uma complexa mistura de povos. Assim, é necessário entendermos que os Bálcãs, nome da região onde se localizava a Iugoslávia, é uma histórica porta de entrada para a Eurásia e já foi lar de diversos povos e impérios nas eras clássica, medieval e moderna, como o Império Bizantino, o Otomano e, claro, os sérvios, sobretudo se analisarmos especificamente o Kosovo. Assim, quando estava sob os auspícios dos bizantinos antes do século VI, o Kosovo teve contato com o catolicismo romano e a ortodoxia bizantina. Com as invasões sérvias, estabeleceu-se o Reino da Sérvia e a Igreja Ortodoxa Sérvia, também conhecida como Igreja Nacional por ser autocéfala, ao passo que com os otomanos a região passou por uma islamização. Nesse cenário, uma importante questão a ser observada é como a disputa entre a Sérvia e a Albânia pelo Kosovo esteve latente durante toda a história dos Bálcãs e reverberou nas comemorações dos jogadores na Copa.
Apesar da complexidade etnográfica acerca dos mesmos, muitos acadêmicos reconhecem que os albaneses são o povo mais antigo do Kosovo. Eles argumentam que são descendentes dos Dardanianos, também chamados de Ilírios, um povo cujo território era rodeado pelo mar Adriático e se estendia até a Ístria, passando pelo Kosovo. Os sérvios, por outro lado, reclamam que os territórios ocupados pelos ilírios eram de controle da Sérvia desde o século XII, incluindo o Kosovo, sendo estabelecido o Reino da Sérvia em 1219, em constante expansão. Desde então, o lugar comum nas versões da história dos albaneses e sérvios era a ortodoxia, tendo a Igreja e o Estado um vínculo inegável. Já no século XIV, chegaram os otomanos, travando batalhas em todo o território dominado pela Sérvia, como o Kosovo e outros locais habitados por albaneses. Um importante acontecimento nesse período foi a luta de Georg Kastriot Skanderbeg, um albanês, contra os otomanos, considerado um símbolo para a resistência do cristianismo em relação ao Islamismo trazido pelos turco-otomanos para a região.

Sob comando dos otomanos, o território dos Bálcãs gozou de certa autorregulação, visto que o império asiático aceitava que suas comunidades subjugadas fossem organizadas de acordo com sua política local. No entanto, vários dos seus territórios passaram por um processo de conversão ao islamismo. No caso do Kosovo, tal processo é reconhecido como tendo sido forçado, visto os constantes atritos entre cristãos e otomanos especificamente nesta região, sobretudo nas áreas rurais do território. Ainda nesse período, vários albaneses que viviam nas regiões tribais migraram para o Kosovo e foram essenciais para a islamização do território, ao passo que os sérvios que ali viviam eram cristãos ortodoxos inferiorizados tanto pelos turcos quanto pelos albaneses e muitos migraram para a Bósnia e para outros territórios ao norte que hoje formam a Sérvia, além de um êxodo para territórios controlados pelos Habsburgos, para garantir maior liberdade religiosa.
Até o século XIX, as tensões dentro do Kosovo entre sérvios, turcos e albaneses serviu para grandes momentos de êxodo dos sérvios, imprimindo na memória coletiva nacional um sentimento de que foram oprimidos. Na década de 1870, após diversas tensões com os Impérios Austro-Húngaro e Otomano, a Sérvia, assim como outros Bálcãs, garantiu sua independência, ao passo que a Albânia, de onde advinha boa parte da população kosovar, ainda permanecia enquanto um território dominado pelos otomanos. Por outro lado, o crescente nacionalismo sérvio no século XIX, em especial durante seu processo de independência, também era carregado de manifestações contra os eslavos mulçumanos e todos aqueles que não professavam a fé cristã na região, instaurando um sentimento de insegurança nos territórios albaneses e kosovares.
Num movimento importante para o momento -e para o futuro conflito com a Sérvia pelo Kosovo- e como uma forma de se proteger de possíveis anexações por parte dos novos Estados cristãos independentes da região, a Albânia criou, no final da década de 1870, a Liga Prizren. Nesse cenário, mesmo que não se vislumbrasse a independência da Albânia, a Liga prezava por sua autonomia, que, à época, tinha o Kosovo como um território albanês. A Liga chegou a governar o Kosovo em 1880, mas eventos envolvendo dirigentes do Império Otomano acabaram por minar a influência da mesma. Apesar disso, os albaneses buscaram construir um nacionalismo capaz de envolver outras variáveis que não a religião, para, assim, enfrentar as pressões externas dos Estados cristãos e de potências como a Rússia, que buscava acesso ao Mediterrâneo através do apoio à cristandade ortodoxa da região dos Bálcãs. Especificamente no Kosovo, crescia lentamente o antagonismo entre sérvios e albaneses, ao passo que as condições dos cristãos no território continuavam a forçar o movimento dos sérvios para o seu novo Estado independente.
As tensões entre os albaneses e os sérvios no Kosovo transcorreram no tempo, até o ponto de o território ser área de disputa durante a I Guerra Mundial, quando, em 1918, o exército da Sérvia -que lutava com os aliados-, tomou o controle da região kosovar e o transformou em uma província da Sérvia. Nascia, então, o que ficou conhecido como Iugoslávia, sob o poder de uma dinastia sérvia, e logo foi formada uma frente de resistência dentro do Kosovo, que recebia massivo apoio de autoridades e movimentos albaneses. Além disso, muitos albaneses mulçumanos que residiam no Kosovo fugiram para territórios da Albânia para se refugiar. Anos mais tarde, no início da II Guerra Mundial, a Albânia foi formalmente criada enquanto um país, tendo suas terras unificadas em 1939.
No período entreguerras, as tensões entre o poder sérvio e os albaneses do Kosovo ficaram cada vez mais intensas, pois estes acreditavam que não recebiam um tratamento digno enquanto cidadãos, tendo direitos básicos negados pelo governo central da Iugoslávia, que, entre o 1918 e 1939, iniciou um processo de redistribuição de terras no Kosovo e desapropriou diversas famílias kosovares em favor de novos donos sérvios e montenegrinos. Com a eclosão da II Guerra Mundial, os territórios da Iugoslávia foram divididos entre a Alemanha e a Itália, momento no qual a relação de força entre albaneses, kosovares e sérvios mudou, tendo em vista que os albaneses eram, de certo modo, apoiados pelos ocupantes italianos. Esse contato com alemães e italianos deu aos kosovares e albaneses uma sensação de que poderiam comandar seus próprios territórios e estavam cada vez mais decididos a enfrentar as forças sérvias. Após conflitos e mudanças políticas, no entanto, o Kosovo foi formalmente anexado à Sérvia ao final da IIGM, passando a ser uma região autônoma do governo sérvio.
Até a década de 1960, quando ficou sob comando do General Tito, a Iugoslávia, que agora adotava um regime comunista, tentava gerenciar a sua própria diversidade étnica sob um lema de unidade e fraternidade. No entanto, as tensões entre os diferentes grupos nas diferentes regiões da Iugoslávia ainda eram latentes e muito se discutia a respeito do governo central iugoslavo (se o poder deveria ser centralizado, se as províncias deveriam se tornar repúblicas, qual modelo econômico seguir, perpetuar os laços comunistas ou liberalizar, etc). Nesse cenário, ao final da década de 1960, os conflitos já haviam superado o senso de nacionalismo comum desejado por Tito, ao passo que várias regiões, incluindo o Kosovo, onde muitos exigiam sua união à Albânia, caminhavam para sua independência.
Em 1974, o Kosovo se tornou uma República Iugoslava sob domínio de um governo albanês e houveram diversas transformações na região kosovar, tanto política quanto socialmente: o Kosovo, apesar de ainda ser ligado à Sérvia, tinha todas os direitos constitucionais de uma república, possuía representação diante do governo iugoslavo, sua bandeira agora era a da Albânia e a língua ensinada nas escolas e universidades era a albanesa. No entanto, apesar do novo status político, muitos kosovares e albaneses queriam a libertação do território em relação à Sérvia e diversos foram os conflitos entre forças iugoslavas e kosovares em relação a manifestantes albaneses e sérvios, estivessem estes contra ou a favor da anexação do Kosovo à Albânia e o poder ainda exercido pelos sérvios na região. Diversos protestos e greves aconteceram em 1981, comandados por estudantes insatisfeitos com a situação econômica e política na qual se encontrava o Kosovo, o que levou às forças iugoslavas a investir em ações para minar o nacionalismo albanês, cada vez mais forte, anti-sérvio e violento. Novamente, ainda na década de 1980, uma onda de migração de sérvios foi constatada, advinda das perseguições a este povo em partes do Kosovo, dotadas de cunho cultural, político e religioso.
Ao final da década de 1980, sob o comando do repressivo Slobodan Milosevic, o governo da Sérvia revogou o status autônomo do Kosovo, limitando o escopo de atuação das autoridades albanesas na região. Assim, com o aparato militar de Milosevic se deslocando da Sérvia para o Kosovo, o elemento religioso foi deveras importante nesse momento, visto que podia ser usado como fator de união entre os diversos grupos de albaneses e kosovares. Nesse cenário, o Kosovo prezou por sua unidade nacional e não revidou às investidas sérvias de maneira violenta num primeiro momento, pois a resposta viria na esfera política: em 1990, após Milosevic dissolver o Parlamento Provincial do Kosovo, ex-deputados se reúnem para formular uma nova lei constitucional que dava ao Kosovo o status de uma República independente da Sérvia mas ainda parte da Iugoslávia e marca a criação de um novo parlamento, além da convocação de eleições presidenciais.
No entanto, a resistência passiva não parecia uma boa opção para todo mundo, visto que alguns grupos armados começaram a ser formados ainda no final da década de 1990, como o Exército para Libertação do Kosovo (UÇK), com suas armas vindo, especialmente, da Albânia, mesmo que não fosse um comércio autorizado pelo governo albanês. Os ataques eram, sobretudo, perpetrados contra autoridades e forças sérvias, e logo o caos estava instaurado, principalmente quando líderes do UÇK começaram a montar bases em quase todas as regiões do Kosovo, estabelecendo uma massa de guerrilheiros contra o que passou a ser chamado de “ocupação sérvia’’, ao passo que as forças de resistência da Sérvia saiam em busca de acabar com os acampamentos e bases do UÇK, que já beiravam a fronteira com a Albânia. Com o acirramento do conflito e a migração de milhares de kosovares-albaneses da região, o Conselho de Segurança da ONU (Resoluções 1160 e 1199/1998) pediu para que o conflito tivesse um fim rápido e respeitasse tanto a auto administração da região quanto a integridade territorial da Iugoslávia, a fim de evitar uma catástrofe humana no Kosovo e não permitir uma ameaça à paz internacional.
A questão era que o sistema internacional estava em um momento ímpar: a Guerra Fria havia acabado, a OTAN se estabelecia enquanto um importante bloco militar, o Conselho de Segurança da ONU praticamente decidia os rumos da segurança internacional, em especial no Ocidente, e, com o trauma das duas grandes guerras, era difícil convencer a comunidade internacional sobre a necessidade de enviar tropas para controlar o conflito ou, até mesmo, lutar com as forças do governo ou do lado dos insurgentes. Assim, após pressões, Milosevic, que agora era presidente da República Federativa da Iugoslávia, aceita receber uma missão de observação internacional e se compromete a reduzir o montante de tropas em solo kosovar. No entanto, os insurgentes do UÇK estavam comprometidos em enfraquecer, tanto militar quanto política socialmente, as forças sérvias, ao passo que a OTAN oferecia aos beligerantes a possibilidade de um acordo de paz.
O acordo não teve sucesso e apesar de os representantes do Kosovo concordarem com o texto, as forças sérvias se recusaram a aceitar as propostas nele contidas, dando início, assim, ao bombardeio de Belgrado, que logo chegaria a Pristina. A OTAN, então, apenas suspendeu o ataque quando Milosevic se rendeu e, claro, após as mais diversas atrocidades terem sido perpetradas tanto no Kosovo quanto na Sérvia, especialmente pois o UÇK sempre se aproveitava das investidas da Organização para também atacar os sérvios. Assim, com o recuo o líder iugoslavo, o Kosovo voltou a gozar de certa autonomia, ao passo que as tropas da OTAN permaneciam na região para monitorar a situação pós-rendição de Milosevic e com as movimentações de sérvios e kosovares albaneses pela região. A força militar da OTAN, apoiada pela ONU -que também enviou missão de paz própria-, desempenhava, agora, o papel de mantenedor da paz.
Desse modo, durante o início dos anos 2000, o Kosovo deixava para trás a subordinação à Sérvia e passava a ser administrado pelas forças da OTAN e um corpo de burocratas da ONU, enquanto as discussões sobre o futuro do Kosovo continuavam latentes, pois, cada vez mais, via-se a necessidade de acabar de vez os conflitos na região. Apesar do consenso sobre a necessidade de conferir estabilidade política, econômica, social e, especialmente, étnica no Kosovo, albaneses e sérvios não concordavam no tocante às condições do futuro status da região, pois, enquanto os primeiros desejavam a total independência, estes últimos ainda tentavam manter o território sob seu jugo. Nesse impasse, diversos foram os conflitos diretos entre civis sérvios e albaneses, e muitos templos ortodoxos, símbolos do povo sérvio, assim como casas e outras construções foram vandalizadas e destruídas.

A independência de fato só veio em 2008, após inúmeros empasses e tentativas de diálogo fracassadas no seio da ONU e, por muitos, é vista de maneira ambígua. O fato é que as diversas guerras que almejavam a independência do Kosovo ou a integridade territorial da Sérvia e da Iugoslávia, por outro lado, possibilitaram a formação de um Estado aparentemente homogêneo, porém marcado pela violência do passado, por uma limpeza étnica avassaladora e pelos resquícios de um conflito que marcou diversas gerações. Dessa maneira, apesar de não ser fácil de entender todas as nuances e todos os acontecimentos que rondam o Kosovo, a Sérvia e os Bálcãs como um todo, podemos compreender um pouco a dimensão dos gestos feitos pelos jogadores da Suíça com herança kosovar em um partida contra a Sérvia, nação que, por muito tempo, foi considerada o principal empecilho para a proclamação da libertação do povo kosovar albanês da Iugoslávia.
Irla Maria Avelino de Menezes (UEPB)
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba. Integrante do grupo do Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (CEPRIR – CNPq/UEPB). Currículo Lattes.
Referências
CUNHA, Raul Luis de Morais Lima Ferreira da. Independência do Kosovo: coerência internacional?. 2019. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/18870/1/phd_raul_ferreira_cunha.pdf
OLIVEIRA, Pedro Aires. Kosovo: o legado da História. Política Internacional, v. 3, n. 20. Disponível em: https://www.ipris.org/files/20/I_20_Kosovo_o_legado_da_Histo_ria.pdf
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/23/deportes/1529768574_136993.html
