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Que o Brasil não se torne outra Síria. Relatos de um residente brasileiro: “Ainda dá tempo de não derramar o leite, e ter que chorar depois por não ter evitado tal estrago”


* (O autor, brasileiro, economista, missionário, reside na Síria onde trabalha em projetos de geração de renda em prol de famílias que perderam tudo durante a guerra. Por razões de segurança prefere não se identificar).

Síria, 20 de janeiro de 2023

Mesmo vivendo fora do Brasil há 17 anos, nunca deixei de acompanhar o contexto sócio-político brasileiro. Nesses anos que estou fora do meu país por escolha pessoal de vida missionária, tive a oportunidade de conhecer mais de 25 países de quatro continentes e de viver em vários lugares muito diferentes uns dos outros (como nos EUA, países da Europa e, sobretudo, do Oriente Médio).

Considerando a diversidade e a complexidade dos contextos socioculturais onde vivi e onde vivo atualmente, aqui na Síria (que são muito diferentes do contexto brasileiro em geral), sempre fui interpelado a analisar a realidade local a partir de uma visão ampla, inclusiva, dialógica, respeitosa e aberta. A cada dia aprendo algo novo com os povos que encontro. Quando penso de ter já superado “uma certa fase” com sucesso, eis que preciso recomeçar novamente. A vida é realmente um eterno aprendizado. Muitas vezes as pessoas dos países onde eu vivi me perguntam: “Onde é melhor viver, aqui ou no Brasil?”. “Onde é mais bonito, aqui ou o Brasil?”. Confesso que nunca respondi a tais perguntas porque acredito que toda comparação “é errada” já em princípio. Cada país tem seus pontos negativos e positivos e qualquer análise deve ser feita dentro do contexto correto. 

Dialogando com as pessoas que me fazem tais perguntas, geralmente reitero que o melhor e o mais bonito país do mundo é aquele no qual vivemos no momento presente da nossa vida. É inútil criar ilusões de uma realidade que não existe (seja esta melhor ou pior que a atual). É necessário ter olhos simples e profundos para colher a beleza, muitas vezes escondida, do próprio povo ou de outros povos com culturas e tradições muito diferentes das nossas.  

O que vou tentar escrever sobre os fatos ocorridos em Brasília no dia 08/01/2023 é uma opinião pessoal e respeito quem pensa em modo diferente. Não vou tratar de política partidária, mas simplesmente sublinhar a importância do diálogo para sanar as muitas feridas que foram abertas nestes últimos anos no Brasil. Ao final desta breve análise apresento uma síntese sobre a trágica situação atual da Síria depois de 12 anos de guerra, enfatizando que no Brasil ainda há tempo de se evitar o pior.

A terceira via que se tentou implantar no Brasil durante as últimas eleições não obteve muito sucesso. Sou contra todo tipo de populismo e de movimentos que fazem ou incitam à lavagem cerebral nas pessoas e minimizam (quando não excluem) a importância da diversidade, da abertura de mente, do diálogo e do bem comum. Teria ficado muito contente se no lugar do atual presidente estivesse no poder uma outra pessoa, mas que fosse democrático, que respeitasse o meio ambiente, a educação, a saúde, as instituições e a diversidade cultural do Brasil. O governo anterior deixou muito a desejar nesses aspectos. A imagem do Brasil no exterior nesses últimos quatro anos (e digo isso a partir de experiência pessoal) se tornou uma grande vergonha, como se o Brasil fosse um quintal dos EUA e movido por ideologias antidemocráticas e contrárias ao bem comum.

Acredito que chamar uma outra pessoa da oposição de ladrão não é suficiente e faz parte de um discurso superficial e infantil. Infelizmente, a corrupção está muito presente na política brasileira (independentemente do partido) e falta um discurso coerente e eticamente responsável em nível geral. É necessário oferecer propostas novas, coerentes, corajosas e inclusivas e não somente apresentar críticas, sejam elas verdadeiras ou fake news. É difícil encontrar propostas sérias oriundas da última gestão em Brasília (e não falo do descaso durante e pandemia, outro fato que não pode ser negado). Acredito que uma coisa é ser contra uma linha de pensamento (seja de direita ou esquerda) e outra são atos vândalos como os ocorridos em Brasília nos quais foram destruídos o patrimônio público, artístico e cultural de uma nação, sem mencionar a ferida causada à democracia. E não entro aqui na questão da rede de fake news e deep fakes que se instalaram no Brasil nos últimos anos (como também nos EUA e em muitos outros países). Como brasileiro, não posso ser conivente com estes atos. É hora de acordar. Não dá mais!

Depois dos fatos acorridos no dia oito de janeiro de 2023 em Brasília, não se trata mais de um discurso de direita ou de esquerda, mas de defender a democracia, o bem comum e a preservação dos seus valores. Não tenho muita certeza se o Brasil aprendeu a lição dos duros anos de ditadura. Faz-se necessária e urgente uma profunda reflexão (deixando de lado ideologias de esquerda, centro ou direita). Não dá mais para aguentar essa baderna sustentada financeiramente por empresários que visam somente interesse ideológico e o próprio capital, e não o bem do país. Ser patriota é uma coisa bem diferente de depredar e destruir símbolos e valores importantes para uma nação.


Perder uma eleição é normal em uma democracia e é por este motivo que eu não consigo entender a baderna e o vandalismo que estão acontecendo no Brasil. Todos têm o direito de se manifestar, de fazer oposição em modo democrático e acredito que isso deve ser feito, mas sem fanatismo. O mundo todo repudiou os atos de barbárie praticados no Brasil. Os culpados pelo vandalismo em Brasília (como estão reiterando muitas organizações sérias da sociedade civil e religiosa no Brasil e no exterior) devem ser punidos com o rigor da lei. Outros partidos que perderam eleições no Brasil no passado nunca fizeram algo deste tipo. Acredito que seremos coniventes com o vandalismo se restarmos indiferentes aos fatos ocorridos, como se nada tivesse acontecido. Algo grave, muito grave aconteceu e não podemos tapar o sol com a peneira e fingir que isso é normal. A nossa omissão poderá custar caro, muito caro mais tarde. 

Jargões como “Deus, pátria e família” não podem mais ser usados nem instrumentalizados para fins antidemocráticos. Onde eu moro atualmente, na Síria, um diálogo aberto, sincero e transparente sobre o contexto local não é mais possível, mas no Brasil ainda o é. São 12 anos de guerra por aqui, uma guerra contra os civis e causada por interesses ocidentais. E é o mesmo ocidente que rouba os recursos naturais do qual o país aqui é rico, como o petróleo e o gás natural. 

O mundo esqueceu literalmente a Síria e os embargos desumanos impostos pelos EUA e Europa só pioram a situação. O preço é alto e, como sempre, é pago pelo povo. Estamos morrendo de frio e fome por aqui: mais de 90% da população vivem abaixo da linha de pobreza e um litro de gasolina custa cerca de 20% do ganho mínimo local, mais ou menos R$ 250,00. Imaginem se no Brasil o litro de combustível custasse R$ 250,00? Mas é isso que se vive por aqui. A estrutura de energia elétrica do país foi quase toda destruída durante a guerra e hoje a distribuição é mínima (entre 01 e 03 horas diárias). A geladeira de casa funciona somente como um armário. Mais de 90% dos jovens deixariam o país se pudessem.

A coisa mais terrível e dura de aceitar (e só podemos no entanto chorar o leite derramado sem poder fazer mais nada), é que antes da guerra se vivia muito bem por aqui. A responsabilidade por essa tragédia local é em grande parte de uma ideologia impulsionada pelo ocidente que se tornou radicalismo, um fanatismo como aquele experimentado nos atos antidemocráticos e violentos em Brasília.

Quando, no Brasil, se diz que não existe liberdade, penso que não sabem o que estão falando. Acredito que seja necessário explicar que liberdade não significa fazer o que cada um quer, como vandalismo e violência, mas liberdade responsável e que considera a liberdade do outro e os interesses e valores de um povo. 

A guerra, por aqui, que já dura 12 anos começou com fatos similares aos do vandalismo em Brasília. Ainda dá tempo no Brasil de não derramar o leite e ter que chorar depois pelo fato de não ter agido agora em modo responsável para evitar tal desastre. Ainda dá tempo de defender a democracia e os valores por ela assegurados e que foram gerados com suor e sangue. Ditadura nunca mais! Em suma, basta de baderna e retrocesso democrático, ou então a perda poderá ser irreversível, como aconteceu por aqui.


Sabemos que o contexto brasileiro é muito complexo e encontrar soluções que agradem a todos não será uma tarefa fácil. Jamais teria deixado o Brasil se não fosse por motivos missionários. Apesar dos seus enormes e complexos problemas, acredito que o Brasil é um dos melhores países do mundo para se viver, um país onde reina a liberdade, onde existe uma riqueza cultural incrível, recursos naturais abundantes e uma natureza linda e única ao mundo. Valorizemos estas riquezas e trabalhemos com inteligência, abertura e cooperação recíproca para melhorar o que não funciona e juntos busquemos soluções sempre mais inclusivas e democráticas.

Este texto reflete as opiniões do autor e não deve ser reproduzido sem permissão.

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