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Resistindo à lógica colonial no pensamento cristão: um ensaio sobre o supersessionismo nos EUA

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The Reception of the Rev. J. Williams, at Tanna, in the South Seas, the Day Before He Was Massacred. George Baxter. 1841

E, estando Paulo no meio do Areópago, disse: Homens atenienses, em tudo vos vejo um tanto supersticiosos; Porque, passando eu e vendo os vossos santuários, achei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens; Nem tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, e a respiração, e todas as coisas; E de um só sangue fez toda a geração dos homens, para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados, e os limites da sua habitação; Para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de nós; Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração. Sendo nós, pois, geração de Deus, não havemos de cuidar que a divindade seja semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida por artifício e imaginação dos homens. Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam; Porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dentre os mortos.

Atos 17:22-31

Encontrar a diferença nunca foi uma tarefa fácil. Não muito diferente de Paulo em Atos 17: 22-31, muitos cristãos da era moderna, seguindo o mandato bíblico percebido de ir até os confins do mundo para pregar o evangelho, encontraram pessoas com tradições antigas que eram diferentes das suas de várias maneiras. Tais encontros costumavam ocorrer no contexto de desejos imperialistas. Os impulsos assassinos do colonialismo condicionaram surpreendentemente o pensamento missionário cristão. Tais impulsos assassinos na história cristã em grande parte significavam que a diferença era percebida como ameaçadora; ameaçadora porque a diferença encontrada não se enquadrava na lógica do pensamento cristão que procurava assimilar e homogeneizar a diferença. Por mais tentador que seja atribuir esses impulsos aos chamados tempos coloniais anteriores, os cristãos fariam bem em prestar atenção em como essa lógica continua a operar hoje no pensamento teológico e político. Para fazer essas conexões, este ensaio lê esse texto centralizando a realidade e as visões de mundo religiosas dos povos nativos nos Estados Unidos.

O pensamento supersessionista cristão no passado acreditou erroneamente e violentamente que os cristãos substituíram os judeus como povo de Deus. O mesmo impulso supersessionista procurou substituir as tradições religiosas dos povos indígenas pela lógica e prática cristãs. No jargão teológico, a teologia que sustentou esse pensamento violento é chamada de “teologia da substituição”. Paul Knitter oferece algumas distinções úteis em seu livro Introducing Theologies of Religion (2002). Em Atos 17, Paulo não procura simplesmente substituir o “deus desconhecido”. Ao estabelecer conexões entre o “deus desconhecido” que ele encontrou na “fronteira” de sua atividade missionária e o “Deus cristão”, Paulo está seguindo um “modelo de cumprimento” – um entendimento de que Cristo agora cumpriu as noções religiosas rudimentares locais. Isso é capturado em Atos 17:23: “O que, portanto, você adora como desconhecido, proclamo a você”.

Isso eventualmente leva Paulo a apadrinhar e infantilizar a tradição religiosa que encontrou. Tais atos teológicos de marginalização continuam a acontecer hoje com consequências políticas. Em nosso presente, os símbolos e tradições sagrados dos povos nativos são tratados como se não estivessem em pé de igualdade com a lógica daqueles em posições de poder (incluindo poder judicial) nos EUA hoje.

A Lei de Restauração da Liberdade Religiosa (RFRA), que entrou em vigor em 1993 nos EUA, destinava-se a proteger, entre outras coisas, as crenças e práticas religiosas das comunidades indígenas, que necessariamente incluem terra. A RFRA foi criada para proteger a religião (e terras indígenas associadas) contra invasões por indústrias públicas e privadas em constante expansão. Apesar disso, as religiões das comunidades indígenas são frequentemente tratadas como se pertencessem a concepções primitivas que não passam por filtros de objetividade.

Em 2008, por exemplo, quatro nações nativas se uniram aos povos Hopi e Navajo para protestar contra uma proposta de um sistema de esgotamento da neve que se procurava instalar na montanha “Shining on Top”, a montanha mais alta do Arizona. A montanha é considerada viva, sagrada e cheia de recursos para a vida, ritual e medicina. Apesar de contestar a proposta no âmbito da RFRA, essas comunidades indígenas receberam basicamente uma negativa simples. A experiência espiritual das comunidades indígenas foi denominada “subjetiva” pelo tribunal. Como Michael D. McNally aponta perceptivamente, “a corte concluiu que o ‘único efeito da neve artificial’ está na ‘experiência espiritual subjetiva dos nativos americanos’, que equivale apenas à realização espiritual diminuída” (MCNALLY, 2020, p. 12 ) Ao denominar a visão de mundo religiosa dos povos indígenas como “subjetiva”, o judiciário – da mesma maneira que Paulo em Atos 17 – parece assumir o papel de decisores “objetivos”.

Os nativos americanos viviam e administravam a terra que hoje é chamada de Estados Unidos. Suas noções de Deus e o que é sagrado protegeram e cuidaram da criação por centenas de anos antes de serem “descobertas” (leia-se conquistadas) por pessoas que, como Paulo, consideravam que seu “deus desconhecido” deveria ser substituído e / ou cumprido pelas noções cristãs de Deus, terra e controle. Essas comunidades indígenas foram marginalizadas em suas próprias terras através de justificativas teológicas para sua conquista.

Quando alguém centra a religião dos nativos americanos, a avaliação de Paulo da religião local como necessitando de arrependimento e transformação (At 17:30) se torna inaceitavelmente difícil. Como George E. Tink aponta, “[…] é curioso que os cristãos sejam levados logicamente a acreditar que ‘Deus’, até o nascimento de Jesus, cuidava apenas de um pequeno grupo de pessoas na face da terra, deixando todos os outros à ignorância, ‘pecado’, idolatria, autodestruição e condenação eterna.” (2008, p. 132).

IVE_Missionaries_in_Papua_New_Guinea
Missionários católicos em Papua Nova Guiné

O pensamento supersessionista cristão – refletido nos modelos de substituição ou de realização – ocorre quando as lógicas coloniais no pensamento cristão são aceitas acriticamente por privilegiar textos das escrituras, como em Atos 17: 22-31. Muitos podem admitir hoje que nenhum grupo de pessoas tem direito – com ou sem justificativa teológica – para substituir outro grupo de pessoas. Enquanto isso é bom, a idéia de que Cristo, de alguma forma, cumpre – como é o caso do argumento de Paulo em Atos 17 – as aspirações teológicas mais profundas de diferentes outros está problematicamente emaranhada na mesma lógica supersessionista.

Uma questão mais profunda permanece quando consideramos o encontro de Paulo com outras pessoas em Atos 17. O ensaio de Robert Allen Warrior, “Canaanites, Cowboys and Indians”, escrito há três décadas, observa que talvez a questão mais profunda seja a natureza egocêntrica da teologia cristã. que assume que a visão de mundo religiosa de diferentes pessoas é uma “armadilha”. Essa é a linguagem usada em Êxodo 23 em referência aos deuses dos cananeus. A consequência de tal religiocentrismo leva a crer que outros deuses e cosmovisões religiosas devem ser substituídos ou cumpridos, em vez de se apresentar como uma oportunidade de diálogo e crescimento mútuo. O privilégio do diálogo é parte do motivo pelo qual este ensaio faz referência ao livro de Knitter. Talvez, então, dialogar com os outros, em vez de apadrinhamento-los com base numa lógica supersessionista, seja o caminho a seguir.

O encontro desses textos das escrituras é, portanto, uma oportunidade de resistir à lógica colonial, descentralizando o pensamento supersessionista. Em vez disso, os cristãos devem centralizar a realidade e as visões religiosas do mundo dos povos indígenas. Alguém poderia argumentar que as realidades contextuais de Paulo eram diferentes e que o cristianismo durante o tempo de Paulo era uma fé marginal, não muito diferente das religiões e povos marginalizados hoje. Se isso era verdade no tempo de Paulo, certamente não é no nosso. Hoje, o cristianismo é frequentemente associado ao colonialismo e, historicamente falando, com razão. Se existe alguma esperança para o papel do cristianismo na busca pela justiça, os atos de leitura das escrituras devem ser vistos pelo que são – teologicamente carregados e politicamente potentes. Muito está em jogo.


Por Fábio Nobre (UEPB)

Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Pesquisa o campo dos Estudos para a Paz e Segurança, com foco especial para a Segurança Humana e as metodologias de estudo da Segurança Internacional. Doutor (2016) e mestre (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Compõe o comitê gestor da da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). Coordena o Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR – UEPB)


Referências:

KNITTER, Paul E. Introducing Theologies of Religion. Orbis Books, 2002.

MCNALLY, Michael D. Defend the Sacred: Native American Religious Freedom beyond the First Amendment. Princeton University Press. 2020.

TINKER, George E. American Indian Liberation: A Theology of Sovereignty

WARRIOR, Robert Allen. Canaanites, Cowboys, and Indians: Deliverance, Conquest, and Liberation Theology Today. In Voices from the Margin: Interpreting the Bible in the Third World. Pp. 277-85. Edited by R. S. Sugirtharajah. Maryknoll, New York/London: Orbis/SPCK. 1989.

Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.

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