Debates

Uma fé digital? A pandemia de COVID-19 e a adaptabilidade da religião

“Digital Faith”, 2018. Shereef Mansour, Egito

Os bloqueios causados pela Covid-19 enfraquecerão a estabilidade da religião moderna? A religião irá se adaptar a uma sociedade amplamente mudada? Neste breve texto, refletimos sobre estas e outras questões, para explorar o que a ascensão da religião digital durante a Covid-19 pode nos dizer sobre a natureza da religião e sua capacidade de adaptação em tempos incertos. 

O sociólogo Danièle Hervieu-Léger (2000) argumenta que a religião é baseada na autoridade da tradição e depende de uma transmissão intergeracional da memória coletiva dessa tradição a fim de se sustentar. Isso não significa que a religião é estática, nem que a natureza fragmentada da modernidade seja incompatível com a religião. Hervieu-Léger (2000) afirma que “a modernidade não acabou com a necessidade do indivíduo ou da sociedade de acreditar. Na verdade, foi observado que a incerteza que flui da dinâmica da mudança tornou a necessidade mais forte.” Reconhecendo que a transmissão da tradição religiosa é um desafio maior na era contemporânea, ele argumenta que, no entanto, ela persiste de maneiras diferentes do que antes. A religião retém um potencial criativo dentro da modernidade.

O que isso significa? Que menos pessoas podem se identificar com as religiões dominantes no seu país do que nas gerações anteriores, mas alguns podem se converter a outra religião em vez disso (Scharbrodt, 2015). Significa que as pessoas continuarão a usar a religião como uma ferramenta de pertencimento cultural, mesmo que rejeitem a doutrina central da Igreja (Inglis, 2007). Práticas religiosas híbridas ganharão maior legitimidade (Brownlee, 2011). Cada vez mais, as pessoas se afastarão da religião institucional para suas necessidades religiosas ou espirituais, como aqueles que procuram espiritualidades alternativas (Gierek, 2011). Finalmente, podemos ver evidências do argumento de Hervieu-Léger (2000) naqueles que se envolvem com visões de mundo e/ou práticas que a sociedade contemporânea questionou como sendo “religião” (Watt, 2014). Esses exemplos ilustram que já sabemos que a religião é maleável, adaptável, e capaz de lidar com mudanças rápidas.

A resposta da religião e de indivíduos religiosos à Covid-19 nos apresenta a oportunidade de examinar os argumentos de Hervieu-Léger (2000) mais uma vez. O que acontece com a religião quando a sociedade “normal” colapsa? Eu imagino que Hervieu-Léger poderia sugerir que nossa sociedade não colapsou; aquela sociedade, como nossa necessidade de tradição, continua e se adapta. Isso é evidente por meio de um exame da religião durante a pandemia de Covid-19, quando parece que um grande número dos participantes da igreja passaram a incorporar a participação religiosa online, muitos pela primeira vez. (Ganiel, 2020).

No entanto, não há nada de novo na religião digital de forma mais ampla. Religião digital é “o espaço tecnológico e cultural que é evocado quando falamos sobre como as esferas religiosas online e offline se tornaram misturadas ou integradas ” (Campbell, 2012). Como todos os outros aspectos de nossas vidas no século 21, a divisão entre a vida offline e online está cada vez mais turva (Boellstorff, 2015; Campbell, 2012). Para alguns adeptos, suplementar ou mesmo substituir a comunidade e a prática religiosa offline por alternativas e extensões online é coisa antiga. É importante estar atento a isso como um baluarte contra relatos superficiais do momento atual, o que pode sugerir que a Covid-19 transformou a religião. A religião está sempre se transformando.

Exatamente como os mundos religiosos offline e online se integram irá variar de acordo com a religião e a cultura mais ampla que a rodeia, ou seja, o seu contexto. Algumas religiões são particularmente boas em aproveitar as oportunidades que as tecnologias digitais nos oferecem. O mormonismo é um bom exemplo. Dentro do mormonismo, as práticas culturais online podem se confundir com as práticas religiosas convencionais, permitindo que um apoie o outro até que as distinções entre eles sejam menos claras (Thain, 2012). Desta forma, o uso da religião digital pelas pessoas oferece uma oportunidade para alguns se acomodarem com sua religião e apoiar as narrativas dominantes sobre sua fé (Burroughs, 2013; Cheong, 2014). Para outros, as tecnologias criam um espaço no qual os aderentes podem desafiar ou até rejeitar aspectos de sua religião. Este espaço é usado criativamente por aqueles que talvez seriam hesitantes em desafiar sua religião na “vida real” por várias razões (Finnigan e Ross, 2013).

É claro que tem havido uma aceleração da inovação na religião digital causada pela Covid-19 em todo o mundo. Esta inovação é digna de análise sociológica.  O uso que as pessoas fazem de transmissões, mídia social, blogs, podcasts, fóruns e outras tecnologias digitais para apoiar, adaptar e desafiar suas experiências religiosas não é novidade da era da Covid-19. O que é novo talvez seja como a Covid-19 tornou a religião digital mais visível e acessível a mais pessoas, especialmente devido à recente cobertura da mídia sobre essas tendências, que trouxe a atenção para o que é possível dentro da religião digital. Claramente, muitos que normalmente não sintonizavam uma transmissão ao vivo de uma missa, agora são mais cientes de que tais coisas podem ser feitas e estão tentando por si próprios. Para aquelas religiões que não fizeram uso de tecnologias digitais no mesmo grau que outras, o momento atual pode acelerar uma transição para uma maior integração online. A religião digital se abriu para as massas como resultado da Covid-19, mas esta é uma aceleração de um desenvolvimento pré-existente, ao invés de algo novo.

Muitos querem saber se as tendências identificadas na primeira metade de 2020 simbolizam uma mudança fundamental em como as pessoas “praticarão” a religião no futuro. Alicerçando essa questão geralmente está a suposição de que tais práticas são completamente novas. É razoável questionar se essas tendências recentes se tornarão outra das adaptações da religião. 

Uma questão significativa pode ser perguntar se o envolvimento religioso online em toda a Covid-19 terá sido suficiente para sustentar individual e coletiva à religião? Ou será que nosso tempo de isolamento enfraqueceu irrevogavelmente a tradição na qual a religião se baseia? Acredito que a religião continuará a se adaptar de forma fascinante e de maneiras inesperadas, e exigindo nossa observação constante e interessada.


Por Fábio Nobre (UEPB)

Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Pesquisa o campo dos Estudos para a Paz e Segurança, com foco especial para a Segurança Humana e as metodologias de estudo da Segurança Internacional. Doutor (2016) e mestre (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Compõe o comitê gestor da da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). Coordena o Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR – UEPB)


Referências:

Boellstorff, T. (2015) Coming of Age in Second Life: An Anthropologist Explores the Virtually Human. New Jersey: Princeton UP.

Brownlee, A. (2011) Irish Travellers and powerful priests: An alternative response to New Age healing techniques In: Cosgrove O, et al. (eds) Ireland’s New Religious Movements. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, pp.97–111.

Campbell, H.A. (2012) The rise of the study of digital religion In: Campbell HA (ed.) Digital Religion: Understanding Religious Practice in New Media Worlds. London: Routledge, pp.1– 21.

Finnigan, J; Ross, N. (2013) “I’m a Mormon Feminist”: How social media revitalized and enlarged a movement. Interdisciplinary Journal of Research on Religion, 9. 1–25.

Ganiel, G. (2020) Is Ireland turning to religion during the Covid-19 crisis? RTE Brainstorm. Disponível em: https://www.rte.ie/brainstorm/2020/0408/1129276-ireland-religion-corona virus

Gierek, B. (2011) “Celtic Spirituality” in contemporary Ireland In: Cosgrove O, et al. (eds) Ireland’s New Religious Movements. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, pp.300–318.

Hervieu-Leger, D. (2000) Religion as a Chain of Memory. Cambridge: Polity Press.

Inglis, T. (2007) Catholic identity in contemporary Ireland: Belief and belonging to tradition.
Journal of Contemporary Religion 22(2): 205–220.

Scharbrodt, O. (2015) Being Irish, being Muslim. In: Scharbrodt O, et al. (eds) Muslims in Ireland: Past and Present. Edinburgh: Edinburgh UP, pp.216–229

Thain. (2012) Negotiating modesty: Reading Mormon fashion blogs as visual rhetoric. Viz. Disponível em: https://viz.dwrl.utexas.edu/old/content/negotiating-modesty-reading- mormon-fashion-blogs-visual-rhetoric.html

Watt. (2014) Santo Daime in Ireland: A “work” in process. The Journal of the British Association for the Study of Religions 16(3): 47–56.

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