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Nacionalismo e Violência na Nigéria: muito além do Boko Haram

“O Orixá Yoruba Xangô e seu Festival”, pelo pintor nigeriano Twins Seven Seven.

Antes de entender o Boko Haram, se faz necessário entender o contexto mais amplo da Nigéria. Trata-se de um país muito grande e diverso, e com muitas expressões religiosas para além do islã. Mais importante, a religião exerce um papel enorme no tecido social e nas relações na Nigéria. O norte é amplamente muçulmano, e o sul amplamente cristão, mas, obviamente, o cenário é muito mais complexo do que essa divisão binária. Entre os muçulmanos, há uma predominância sufista e salafista, mas também há pequenas comunidades xiitas. Há também minorias cristãs no norte. Mais ao sul, predominam o catolicismo e o anglicanismo. Também há islã no sul, e ao longo de todo país, há as várias expressões das religiões tradicionais – especialmente numa faixa central que eles chamam de Cinturão do Meio.

Há muitos conflitos violentos e tensões sociais na Nigéria. Normalmente eles são simplificados como puramente religiosos, mas, como o pesquisador deve perceber, tal simplificação nunca é verdade. Lá, as tensões também são manifestações de profunda desigualdade social e concentração de renda. Uma vez que, como apontado, a religião tem um papel importante, ela se mescla nos conflitos igualmente.

O contexto histórico também é importante. Em especial a colonização britânica e o tráfico de escravos. Embora formas de escravidão já existissem entre as comunidades islâmicas e yorubas, por exemplo, a forma capitalista e predatória que os europeus levaram, foi o que desordenou as relações sociais e causou guerras entre vários grupos, na busca por cativos para revender aos ingleses. Em sua saída, os britânicos delegaram o poder aos cristãos, e o nacionalismo nigeriano tem uma predominância de cristãos. Um nacionalismo muçulmano cresce no movimento de independência nos anos 50 e 60, e aí residem a origem dos grupos violentos muçulmanos como o Boko Haram.

Desde a sua independência em 1960, a Nigéria tem lutado sem sucesso para claramente articular a relação entre religião e estado.

Os colonialistas aparentemente legaram ao novo Estado-nação um regime secular na independência, as contradições internas, que, paradoxalmente, foram propagadas pela autoridade colonial, incubadas para representar um desafio ao novo estado logo depois. De um lado, havia o norte muçulmano, criado sob o domínio indireto inglês, que se acomodava à ordem legal da sharia; por outro lado, havia o sul cristão / animista, orientado sob o regime secular britânico. Assim, o estado secular pós-independência, que parecia aceitável para o sul cristão / animista, era odiado pelo norte muçulmano. Este paradoxo permaneceu como o calcanhar de Aquiles da existência corporativa da Nigéria, uma vez que os islâmicos do norte buscaram consistentemente o estabelecimento de um estado islâmico para substituir o regime secular existente. Se faz mister, portanto, procura situar as fronteiras legais e constitucionais das relações entre o estado e a religião na Nigéria. É preciso delinear a fronteira conceitual entre religião e política, ao mesmo tempo em que avalia o impacto da relação atual na segurança nacional.


A Nigéria é um estado multiétnico e multi-religioso. Os principais grupos religiosos neste país de mais de 160 milhões de habitantes são o Cristianismo e o Islã. Não há uma representação científica da força numérica desses grupos religiosos nem de sua distribuição geográfica. A fé islâmica prepondera nas partes noroeste e nordeste do país [que é composto por Sokoto, Zamfara, Borno, Yobe, Katsina, Kano, Kebbi, Jigawa, Bauchi, Taraba (embora o estado de Taraba tenha uma distribuição quase igual de cristãos e muçulmanos), além dos estados de Gombe e Adamawa]. Por outro lado, o cristianismo é mais proeminente nas zonas geográficas sudeste e sul-sul (compostas por Imo, Enugu, Anambra, Abia, Ebonyi, Delta, Edo, Bayelsa, Rivers, Cross-Rivers e estados de Akwa Ibom – com o estado Edo sem dúvida compreendendo uma distribuição igual de muçulmanos e cristãos.)

As zonas sudoeste e centro-norte (compostas pelos estados de Lagos, Oyo, Ogun, Ondo, Ekiti, Osun, Kaduna, Níger, Plateau, Nassarawa, Benue e Kogi) e a zona centro-norte (o Território da Capital Federal) têm número equilibrado de muçulmanos e cristãos; exceto pelo Estado de Benue, que é inteiramente composto por cristãos e seguidores da Religião Tradicional (aqui, simplificada como uma única expressão, que na verdade significa um compilado de diversas manifestações locais com semelhanças e diferenças complexas entre si). Embora muitas vezes marginalizada, a religião tradicional tem uma quantidade razoável de seguidores e, portanto, tem um grau significativo de influência na determinação das relações entre o Estado e a religião na Nigéria. Apesar do aparente domínio do islamismo e do cristianismo nas relações públicas, a natureza sincrética da religião entre as tribos nigerianas paradoxalmente fez da Religião Tradicional uma espécie de caldeirão, já que aqueles que professam as religiões islâmica e cristã frequentemente patrocinam os sacerdotes religiosos tradicionais para rituais espirituais. Assim, apesar do aparente desprezo da Religião Tradicional pelas elites nigerianas como resultado das influências supostamente modernizadoras das religiões colonizadoras, ela continua a ser furtivamente patrocinada por muitos adeptos do islamismo e do cristianismo e, portanto, manteve sua relevância.

MAPA 1 – Map of Nigeria religion – https://maps-nigeria.com/nigeria-religion-map.

As relações pré-coloniais entre Estado e religião entre as diferentes nacionalidades étnicas que agora formam a entidade geográfica chamada Nigéria assumiram várias formas. Enquanto as instituições tradicionais de governo de algumas nacionalidades étnicas eram um amálgama de autoridade política e religiosa, a religião e suas instituições eram independentes da autoridade política em algumas comunidades.

Além disso, o sistema incongruente de administração colonial nas diferentes regiões permitiu que o sistema de governo califatorial islâmico no norte da Nigéria continuasse ininterrupto, enquanto impunha um sistema secular ocidental na parte sul do país. Esse contraste administrativo reforçou a incompatibilidade preexistente nas relações Estado-religião entre as nacionalidades étnicas que agora estavam integradas como um Estado-nação. Em última análise, a divergência cultural entre as nacionalidades étnicas, que foi reforçada pela política colonial de governo, gerou uma cultura de conflito sustentado e luta pela superioridade entre as instituições religiosas e estatais, por um lado, e entre os vários grupos religiosos inter se.

As relações contemporâneas entre Estado e religião na Nigéria são caracterizadas por fronteiras mal definidas. Enquanto a Constituição Nigeriana declarou liberdade de religião e aparentemente busca separar os assuntos do Estado das inclinações doutrinárias da religião, a mesma constituição cria e reconhece instituições executivas e judiciais com preconceitos religiosos. Assim, a existência de múltiplos sistemas judiciais baseados na jurisprudência secular, religiosa e tradicional, bem como múltiplos sistemas educacionais baseados em princípios seculares e religiosos, apenas servem ao propósito de ofuscar o caráter real do estado nigeriano, seja ele secular ou religioso. A incerteza das ramificações de segurança deste conceito significa que a religião é frequentemente instrumentalizada para fins políticos e egoístas, criando assim uma forte animosidade entre os grupos religiosos. Isso ocorre principalmente porque a politização da religião inevitavelmente gera injustiças premeditadas em termos de alocação de recursos e outras ramificações do patrocínio pelo(s) grupo(s) religioso(s) dominante(s).

“The Spirits of Brothers and Sisters”, Twins Seven Seven.

A consequência dessa configuração disfuncional das relações religiosas do Estado é a persistência de conflitos induzidos pela religião no país desde o início dos anos 1980. A luta persistente dos islamitas no norte da Nigéria para estabelecer a sharia como lei e base da governança tem sido uma fonte consistente de conflito; portanto, grupos radicais e violentos muitas vezes aproveitam a deferência predominante à sharia e ao governo entre os muçulmanos do norte para articular suas motivações próprias. A campanha de terror do Boko Haram no norte da Nigéria, que é ostensivamente fundada em uma agenda de islamização, demonstra as ramificações desse desafio, já que as atividades violentas desse grupo tensionaram a elasticidade da segurança e unidade nacional, pondo em questão a viabilidade da Nigéria como um Estado.

Este cenário requer uma investigação sobre a real natureza e caráter do Estado nigeriano em termos de sua relação com a religião. Nesse sentido, este argumentamos que as contradições propagadas pela administração colonial nas regiões norte e sul antes de sua eventual amálgama em 1914 estão profundamente implicadas no caráter pós-colonial das relações Estado-religião. Tendo em vista o caráter destrutivo dessa situação atual, é preciso compreender as possibilidades de uma eventual separação entre o Estado e os assuntos religiosos, sem necessariamente desvirtuar a essência espiritual da religião na vida privada.



Por Fábio Nobre (UEPB)

Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Pesquisa o campo dos Estudos para a Paz e Segurança, com foco especial para a Segurança Humana e as metodologias de estudo da Segurança Internacional. Doutor (2016) e mestre (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Compõe o comitê gestor da da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). Coordena o Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR – UEPB)



Recomenda-se a leitura de:

AKAH, Josephine. Religion And Ethnicity: The Need For National Integration In Nigeria. African Journal of Multidisciplinary Research. Vol. 3, No. 1, p. 12-23, ISSN: 2636-7173 Special Issue. 2018.

OLAWALE, Yemisi. Religion and Identity Politics in Nigeria. NETSOL New Trends in Social and Liberal Sciences Vol5(Issue 1):pp.1-17. 2020.

OLUWATOSIN, Bello.. Ethnic Nationalism and Conflicts in Africa. (2012)

SAGOBA, Mia. West African Religion(s). Cultures of West Africa. Disponível em: https://www.culturesofwestafrica.com/west-african-religion/

SAMPSON, I. T. . Religion and the Nigerian State – Situating the de facto and de jure Frontiers of State-Religion Relations and its Implications for National Security. 2014.

Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.

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