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Dimensões religiosas do populismo: o sagrado, o sobrenatural e o escatológico

Fábio Nobre (UEPB)

O populismo é perigoso. Se há algo em que especialistas em política, acadêmicos e a mídia tendem a concordar hoje, é basicamente isso. O populismo é visto como uma ameaça ao bem-estar econômico, à coesão social, à segurança nacional, à paz global e – em última instância – à própria democracia. No entanto, o populismo permanece politicamente popular. Por que dezenas de seguidores estão dispostos a apoiar candidatos e políticas populistas contra o que parece ser o bom senso?

O populismo é um estilo espiritual de fazer política. Como explicou Benjamin Moffitt (2016), o populismo é um “estilo político” e não um sistema ideológico fixo. Considerando uma ampla gama de casos populistas ao redor do mundo, podemos identificar três elementos quase religiosos do estilo populista que vão além de meros interesses racionais: o sagrado, o sobrenatural e o apocalíptico, ou escatológico. Esses três aspectos espirituais não estão presentes em todos os casos, mas cada um pode nos ajudar a entender o estranho apelo do populismo.

Primeiro, o populismo estabelece fronteiras “sagradas”. Os líderes populistas falam em termos do sagrado e do profano, do puro e do impuro, do merecedor e do que não merece. Gritos de guerra como “construa o muro!” ou “chega de mesquitas!” estabelecem limites para manter o povo sagrado a salvo de ameaças externas.


No entanto, as fronteiras populistas são mais do que simplesmente as linhas entre ‘nós’ e ‘eles’. Elas são profundamente mantidas a ponto de serem invioláveis. Elas serão defendidas com violência, se necessário. Na Índia, por exemplo, o partido BJP do primeiro-ministro Narendra Modi é construído sobre o dogma do Hindutva, ou supremacia cultural hindu. Desde que chegou ao poder em 2014, Modi usou a retórica e possibilitou políticas que moldam a Índia em uma imagem mais hindu. Em nenhum lugar isso é mais aparente do que nas políticas que proíbem o abate de vacas – consideradas sagradas pelos hindus – em regiões do país. As políticas das vacas sagradas têm sido usadas como pretexto para vários episódios de violência e perseguição direcionada contra os muçulmanos, rotulados como assassinos de vacas porque cultivam e consomem carne bovina.

Na Grã-Bretanha, um exemplo menos literal de “vaca sagrada” é o Serviço Nacional de Saúde (NHS). O NHS é muito valorizado pelos britânicos em todo o espectro político. Nas Olimpíadas de Londres de 2012, a cerimônia de abertura expressou um ethos multiculturalista da esquerda política e contou com enfermeiras do NHS dançando em torno de leitos de hospital para celebrar o welfare state. Apenas quatro anos depois, o NHS estava no centro da campanha para apoiar o Brexit na direita política. O ônibus vermelho da campanha Vote Leave trazia o slogan “Enviamos à UE £ 350 milhões por semana – vamos financiar nosso NHS em vez disso.” Este slogan não tinha nenhuma semelhança com a verdade e foi refutado pelo ativista Nigel Farage na própria manhã do Resultado do referendo da UE. No entanto, foi uma genial obra populista porque visava um grupo demográfico de eleitores mais velhos, especialmente propensos a ver o NHS como um valor sagrado que vale a pena defender.


Um segundo elemento espiritual do populismo é que ele tende a se reunir em torno de líderes ou movimentos com uma energia aparentemente “sobrenatural”. Em seu clássico livro Economia e Sociedade (1999), Max Weber argumentou que tempos de crise produzem tipos peculiares de líderes. Esses líderes carismáticos, como ele os chamava, eram “portadores de dons específicos de corpo e mente que eram considerados sobrenaturais (no sentido de que nem todos podiam ter acesso a eles)”.

Weber não estava sugerindo que os líderes carismáticos tivessem o poder real de dobrar as leis da natureza abrindo o mar ou ressuscitando os mortos. Em vez disso, por sobrenatural ele quis dizer que esses líderes eram vistos como únicos capazes de enfrentar os desafios de um momento no tempo. Onde políticos de carreira e tecnocratas falharam repetidamente, líderes carismáticos podiam entrar na briga e instantaneamente chamar a atenção.

O carisma sobrenatural, nesse sentido, é em grande parte sobre personalidade e serendipidade – o ato ou capacidade de descobrir coisas boas por mero acaso, sem previsão. Talvez não seja surpreendente que muitos líderes populistas tenham começado no palco ou no showbusiness. Beppe Grillo, do Movimento Cinco Estrelas da Itália, aprimorou seu estilo político mordaz como comediante. Donald Trump conquistou seguidores na edição americana do programa O Aprendiz, com a firmeza autoritária do seu bordão You are fired! (Você está demitido!). Jair Bolsonaro também experimentou uma ascensão meteórica desfrutando de espaço em humorísticos como o CQC ou o Superpop.

Outros líderes herdam seus mantos políticos. Marine Le Pen é filha de Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional de extrema-direita. Embora alguns possam vê-la como mais moderada do que seu pai, foi acompanhando-o em comícios que ela ganhou sua luz própria. Os discursos de Marine Le Pen na icônica estátua de Joana d’Arc em Paris estabeleceram ainda mais seu mythos de uma heroína corajosa defendendo sua nação contra as adversidades. A força sobrenatural do populismo é muitas vezes impulsionada por um culto à personalidade.

Há um último elemento espiritual do estilo populista: o apocalíptico, ou escatológico. Muitos líderes populistas têm visões sombrias do caminho que o mundo está tomando, que têm uma semelhança metafórica com o apocalipse. Outros líderes ou movimentos podem literalmente se ver como cumprimentos de profecias apocalípticas nas escrituras. O líder populista de longa data da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, é considerado por alguns como a personificação das profecias islâmicas para enfrentar adversários judeus e cristãos no fim dos tempos. Seus planos anunciados de transferir a embaixada turca para Jerusalém Oriental como capital de um Estado palestino podem ser vistos sob esta luz.

É o ex-presidente Donald Trump quem realmente exemplifica a dimensão escatológica do populismo. Seu discurso de posse sobre a ‘carnificina americana’ foi notoriamente distópico. Sua beligerância em relação ao Irã e à Coreia do Norte ameaçava precipitar um conflito nuclear. No entanto, o populismo escatológico de Trump é visto mais claramente pelos olhos de seus seguidores evangélicos. Nas eleições de 2016, um total de 81% dos cristãos evangélicos brancos apoiaram Trump – níveis mais altos do que os alcançados por qualquer candidato presidencial republicano até então, incluindo George W. Bush.


A desonestidade em série e sua relação com as mulheres não parecem enquadrá-lo como um símbolo da moralidade cristã. Os pastores evangélicos, no entanto, encontraram uma nova maneira de ver Trump por meio da profecia bíblica, comparando-o ao rei Ciro do século VI AEC, que resgatou o povo judeu do cativeiro babilônico. O próprio Ciro não era um seguidor do Deus de Israel, mas, em vez disso, Deus o usou para trazer liberdade ao Seu povo. Para muitos evangélicos, esta é uma comparação reconfortante. O lugar de Trump foi garantido por meio de importantes vitórias simbólicas, incluindo a nomeação de juízes pró-vida para aa Suprema Corte e a transferência da embaixada americana para Jerusalém. Era impossível que um novo escândalo pessoal ou política desumanizadora, como separar crianças de seus pais na fronteira EUA-México, diminuíssem o papel mais amplo de Trump na história escatológica.

Fenômeno parecido ocorreu no Brasil, com Jair Bolsonaro. A série de escândalos de corrupção e, em especial, o espetáculo dantesco que foi a condução da pandemia de COVID-19 pouco arranharam a sua imagem com aqueles que o enxergam como – se não um mito salvador da pátria – ao menos um mal menor do que a hecatombe comunista que seria a alternativa.

A série de eventos que levam ao apocalipse são predeterminados e nada pode ficar em seu caminho. O populismo apocalíptico, portanto, é acompanhado por um tipo fatalista de negligência moral. Como Wendy Brown (2017) argumenta, os populistas escatológicos podem conscientemente fazer escolhas políticas que levam à destruição ou até à morte.

O populismo em alguns países pode ser uma moda passageira. Poderia até fortalecer a governança democrática se os políticos fossem forçados a apresentar melhores argumentos. Em outros lugares, o populismo terá repercussões econômicas e políticas mais duradouras. No entanto, o populismo que entorpece seus líderes e apoiadores quanto às consequências humanas de suas ações é, fundamentalmente, um risco moral. Um populismo sagrado, sobrenatural ou apocalíptico ambicioso pode descartar a vida de outros seres humanos como uma ameaça existencial a ser eliminada ou como nada mais que um dano colateral. É aí que mora o verdadeiro perigo.


Por Fábio Nobre (UEPB)

Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Pesquisa o campo dos Estudos para a Paz e Segurança, com foco especial para a Segurança Humana e as metodologias de estudo da Segurança Internacional. Doutor (2016) e mestre (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Coordena o Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR – UEPB)


Recomenda-se a leitura de:

Brown, Wendy. (2017) Apocalyptic Populism. Eurozine. Disponível em: https://www.eurozine.com/apocalyptic-populism/

Martinez, Jessica. Smith, Gregory. (2016) How the faithful voted: A preliminary 2016 analysis. Pew Research Center. Disponível em: https://www.pewresearch.org/short-reads/2016/11/09/how-the-faithful-voted-a-preliminary-2016-analysis/.

Moffitt, Benjamin. (2016). The Global Rise of Populism: Performance, Political Style, and Representation. Stanford University Press.

Weber, Max. (1999). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa (trads.). Brasília. Editora Universidade de Brasília.

Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.

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