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Bento XVI e os Desafios de um Pontificado em Tempos de Turbulência

Por Iasmin Bernardo (UEPB/CEPRIR)

O papado de Bento XVI ficou marcado pelos escândalos sexuais envolvendo religiosos da Igreja Católica. No entanto, é importante refletir sobre como um acadêmico da teologia lidou com os delicados caminhos da diplomacia. Quando foi anunciado como papa, ficou conhecido, num primeiro momento, como o alemão que se tornou pontífice, e muitos viam nele uma possível redenção para o seu povo. Contudo, desde o início, Bento XVI acreditava que a religião não deveria se envolver diretamente com a política, pois não pertencia a este mundo. Em suas palavras, a Igreja não deveria ser usada para a ampliação de uma instituição, mas sim para abrir caminho para Deus, conforme declarou aos funcionários da Secretaria de Estado.

Sua nomeação para o cargo de Secretário de Estado, indicada por um amigo de longa data da Congregação para a Doutrina da Fé, foi recebida com reservas por parte de alguns religiosos, que viam sua falta de experiência diplomática como uma limitação. Essa habilidade seria essencial para auxiliar o papa e evitar possíveis erros de condução. Além disso, Ratzinger não acreditava que seu papado seria longo, motivo pelo qual decidiu seguir caminhos já conhecidos. Sua primeira escolha para o posto, inclusive, havia sido o cardeal Jorge Bergoglio.

O pontificado de Bento XVI também foi marcado por sua busca em pacificar as três grandes religiões monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo. O primeiro passo foi dado em sua visita a Auschwitz, quando expressou profunda compaixão pelas vítimas do Holocausto. Apesar de um início conturbado no diálogo com o Islã, em razão de uma infeliz colocação em um discurso em Ratisbona que foi interpretada como ofensiva, o papa buscou corrigir o mal-entendido, afirmando que não via o islamismo como uma religião violenta. Pouco tempo depois, 38 líderes muçulmanos enviaram-lhe uma carta enfatizando que as diferenças religiosas não deveriam levar ao ódio, mas à justiça e às boas obras. Esse gesto marcou o início de uma relação de respeito e cooperação entre as duas religiões.

Entretanto, a decisão de revogar a excomunhão de quatro bispos ordenados irregularmente pelo arcebispo Marcel Lefebvre causou grande polêmica. Entre eles estava o inglês Richard Williamson, que negava o Holocausto. A medida levou a imprensa a acusar Bento XVI de antissemitismo, embora ele só tenha tomado conhecimento das declarações de Williamson após a assinatura do decreto. Esse episódio abalou a confiança de muitos fiéis e gerou questionamentos sobre a direção que o papa estava conduzindo a Igreja Católica.

Outro episódio que marcou seu pontificado foi a chamada crise dos preservativos. Durante uma entrevista após sua viagem a Camarões e Angola, a imprensa destacou a manchete “Papa na África: AIDS – preservativos inúteis”. Na verdade, Bento XVI havia afirmado que apenas a distribuição de camisinhas não seria suficiente para conter a epidemia, defendendo que era necessário um conjunto de ações mais amplas. A ministra da Saúde da Bélgica, Laurette Onkelinx, chegou a publicar uma nota de protesto à Santa Sé, alegando que a fala do papa colocava vidas em risco. O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, esclareceu que o papa defendia três pilares fundamentais para o combate à AIDS: tratamento gratuito, humanização da sexualidade e solidariedade com os doentes.

O maior escândalo do papado de Bento XVI, no entanto, foi o dos abusos sexuais cometidos por religiosos católicos. Esse problema já era conhecido desde seu tempo como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Embora tenha criticado a forma branda com que a Igreja tratava os abusadores, Bento XVI adotou medidas mais rigorosas durante seu pontificado. Sua estratégia incluiu proximidade e compreensão com as vítimas, sanções a bispos negligentes, reformas nos seminários, colaboração com a justiça civil, necessidade de purificação e penitência, e, principalmente, tolerância zero em relação aos culpados. O prazo de prescrição para os crimes foi ampliado de cinco para dez anos.

Entre os casos mais notórios está o do padre Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, que foi investigado por Ratzinger desde antes de seu pontificado. Em 2009, após denúncias comprovadas de abusos contra seminaristas e vida dupla, foi forçado a renunciar. O papa condenou com firmeza tanto os abusadores quanto os que tentaram proteger a Igreja ocultando tais crimes.

Um relatório publicado em 2009 pelo juiz Ryan revelou que, ao longo de 50 anos, cerca de dois mil e quinhentos abusos foram cometidos em instituições católicas na Irlanda, incluindo casos de violência física e psicológica. Muitos agressores eram apenas transferidos de dioceses, sendo protegidos por bispos e superiores. Diante disso, a Igreja procurou reconhecer seus erros e demonstrar empatia pelas vítimas e suas famílias, reforçando o compromisso com a justiça.

No início de seu papado, superada a primeira impressão de ser um papa alemão, Ratzinger foi amplamente acolhido pelo povo católico e participou de jornadas da juventude com multidões de fiéis. Entretanto, após tantas crises, começou a refletir se ainda teria forças para continuar sua missão. Com a saúde e o vigor mental em declínio, e já com mais de 80 anos, concluiu que não poderia exercer o pontificado como desejava. Em 11 de fevereiro de 2013, anunciou oficialmente sua renúncia. Embora muitos tenham interpretado essa decisão como um sinal de fraqueza, ela revelou, na verdade, a lucidez e a humildade de um líder que soube reconhecer seus limites e abrir caminho para a renovação de uma instituição milenar.

Bento XVI errou e acertou em seu papel como líder da Igreja Católica. Ciente de que seu ponto forte era a teologia, reconhecia suas limitações em áreas administrativas e diplomáticas. Ainda assim, priorizou o diálogo entre as religiões cristã, judaica e islâmica, defendeu a importância do Estado laico e chamou atenção para a preservação do meio ambiente. Reformou a administração financeira do Vaticano, criando a Autoridade de Informação Financeira (AIF) e reorganizando o Instituto para as Obras de Religião, buscando transparência e ética na gestão dos recursos da Igreja.

O pontificado de Bento XVI foi um período de desafios e contradições, mas também de coragem intelectual e espiritual. Seu legado é o de um teólogo que enfrentou as sombras de sua Igreja com sinceridade, buscou a verdade em meio às crises e mostrou que a fé, quando guiada pela razão e pela humildade, pode ser um instrumento de reconciliação e de esperança.


Iasmin de Souza Bernardo

Graduanda de Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba.
Integrante do Grupo de Pesquisa do Centro de Estudos em Política, Relações
Internacionais e Religião (CEPRIR- CNPq/UEPB).


Recomenda-se a leitura de

CARLETTI, Anna. O internacionalismo vaticano e a nova ordem mundial: a diplomacia pontifícia da Guerra Fria aos nossos dias. Brasília: FUNAG, 2012. 

SEEWALD, Peter. Bento XVI: A Vida, 1 ,São Paulo-SP, Paulus Editora, 2021.

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