Debates

A Invenção da Religião Como Violência


Não há nada perto de um consenso entre os estudiosos sobre o que define a religião; a incapacidade de definir religião já foi descrita como “quase uma questão de dogma metodológico”. A palavra “religião” foi empregada em diversos momentos e localidades por indivíduos distintos, em consonância com seus próprios interesses. De maneira mais específica, a categoria “religião”, conforme utilizada mais frequentemente, está intrinsecamente relacionada à história da modernidade ocidental, sendo indissociável da concepção do que Talal Asad (2001) denominou de “gêmeo siamês” do secularismo em relação à religião.

Até recentemente, o diálogo acadêmico sobre a definição de religião foi pautado pelas perspectivas substantivista e funcionalista. A perspectiva substantivista tende a ser exclusivista, restringindo o significado da religião a crenças e práticas relacionadas a conceitos como divindades ou o “transcendental”. O que diferencia a religião dos fenômenos seculares é descrito em termos do conteúdo ou substância da crença religiosa. As definições substantivistas de religião aproximam-se da noção ocidental comum de religião, tal como a praticada pelos cristãos, muçulmanos, hindus e membros de algumas outras chamadas por Jurgensmeyer (2009), por exemplo, de “religiões mundiais”.

Por outro lado, as perspectivas funcionalistas expandem a definição de religião para incluir ideologias e práticas, como marxismo, nacionalismo e ideologia de livre mercado, que geralmente não são consideradas religiosas. Isso é feito não com base no conteúdo, mas na forma como essas ideologias e práticas funcionam em diversos contextos para fornecer uma estrutura abrangente de significado na vida social cotidiana. Ambas as abordagens tendem a ser essencialistas, considerando a religião como um elemento externo ao mundo, um componente fundamental, trans-histórico e transcultural da vida social humana, identificável por seu conteúdo ou função, caso possamos concordar sobre os critérios precisos que separam a religião do secular.

O objetivo deste texto não é dissolver o problema da religião e da violência dizendo que a religião é um conceito vago, de modo que não existe religião e, portanto, não existe o problema da religião e da violência. O problema não é que as definições implícitas de sejam vagas e confusas. A questão é: as distinções entre o que conta e o que não conta como religião são arbitrárias? Que configurações de poder autorizam e são autorizadas por essas distinções? Não existe uma essência transhistórica e transcultural da religião. O que conta como religião e o que não conta em um determinado contexto é contestável e depende de quem tem o poder e autoridade para definir religião em qualquer momento e lugar.

Assim como Vincent Cavanaugh (2009), e profundamente fundamentado em seu estudo, esse texto é provocado pela ideia de que:

Mais guerras foram travadas, mais pessoas foram mortas e mais maldade perpetrada em nome da religião do que por qualquer outra força institucional na história da humanidade.

A afirmação encontra-se na abertura do famoso livro When Religion Becomes Evil, de Charles Kimball, mas preenche as mentes do senso comum e do incomum senso acadêmico em Relações Internacionais como uma verdade divina. No entanto, o que seria necessário para provar a afirmação de que a religião causou mais violência do que qualquer outra força institucional ao longo da história humana? Seria preciso primeiro um conceito de religião que fosse pelo menos teoricamente separável de outras forças institucionais ao longo da história. Também seria necessário identificar essas forças institucionais rivais, o que normalmente não é feito, mas advoga-se por sua implicitude: instituições políticas como tribos, impérios, reinos, feudos, Estados e assim por diante. O problema é que não havia nenhuma categoria de religião separável de tais instituições políticas até a era moderna, e então essa passou a ser a dinâmica principalmente no Ocidente. Que significado poderíamos dar à afirmação de que a religião romana é a culpada pela violência imperialista da Roma antiga, ou à afirmação de que é a política romana e não a religião romana a culpada? Qualquer uma dessas afirmações seria absurda, porque não havia uma divisão clara entre religião e política; A religio romana era indissociável do dever para com o imperador e para com os deuses da vida cívica romana.

A separação da religião da política, economia, cultura e outras forças institucionais nos tempos antigos e medievais não existe no registro histórico. Como poderia ser possível provar tal afirmação empiricamente? Como alguém poderia mostrar, a partir de evidências empíricas, que a religião causou mais violência do que qualquer outra força institucional na história, quando a distinção está ausente nas culturas pré-modernas? Como alguém compararia a religião à política ou economia como causas de guerra, digamos, no Sacro Império Romano do século X, quando ninguém na época pensava ou agia como se houvesse tal distinção relevante?

Qualquer tentativa de provar essa afirmação “banal” sobre a influência destrutiva da religião na história ficaria atolada em um anacronismo sem esperança. A a religião como uma categoria distinta da atividade humana separável da cultura, política e outras áreas da vida é uma invenção do Ocidente moderno. No curso de um estudo histórico detalhado do conceito de religião, Smith (1962) foi levado a concluir que, fora do Ocidente moderno, não há nenhum conceito significativo equivalente ao que pensamos como religião. O problema não é simplesmente que as diferenças são subestimadas para identificar a mesmice essencial da religião em todos os tempos e lugares. O problema mais profundo é que os próprios relatos transhistóricos da religião estão implicados em mudanças na forma como a autoridade e o poder são distribuídos, enquanto afirmam ser puramente descritivos.

Relatos transhistóricos da religião surgiram entre os séculos XV e XVII como parte de uma nova configuração das sociedades cristãs em que muitos poderes legislativos e jurisdicionais e reivindicações de poder – bem como reivindicações de devoção e fidelidade do povo – estavam passando da igreja para o novo Estado soberano. O processo histórico de secularização e a separação entre Igreja e Estado não foram de forma alguma incontestados ou completos nestes séculos ou nos seguintes.

Nossas definições de religião não refletem simplesmente a nova realidade do Ocidente moderno, mas ajudam a moldá-la. O próprio conceito de religião, enquanto entidade com características distintivas em relação a outros fenômenos humanos, é resultado dos processos e momentos históricos que geraram uma concepção individualista da mesma. A religião é, portanto, como Arnal diz em outro lugar, uma categoria política especial que marginaliza e domestica quaisquer formas de ação social coletiva que retenham uma orientação positiva ou utópica.

Aqueles que não separam a religião da política – muitos muçulmanos, por exemplo – são muitas vezes vistos como menos avançados e menos racionais do que seus equivalentes ocidentais “normais”. A ideia de que existe um impulso humano trans-histórico chamado religião com uma tendência singular de promover o fanatismo e a violência quando combinado com o poder público não é um fato empiricamente demonstrável, mas é em si um acompanhamento ideológico das mudanças de poder e autoridade que marcam a transição de do medieval ao moderno no Ocidente.

Então, concluímos que não existe religião, nenhum conceito coerente de religião e, portanto, não precisamos nos preocupar com a questão da religião e da violência? Não. A questão não é que não exista religião. Em certas culturas, a religião existe, mas como produto da construção humana. Não existe uma essência trans-histórica e transcultural da religião, mas em diferentes épocas e lugares, e para diferentes propósitos, algumas coisas foram construídas como religião e outras não.

Em vez de buscar a essência atemporal e transcultural da religião, portanto, vamos perguntar por que certas coisas são chamadas de religião sob certas condições. Que configurações de poder são autorizadas por mudanças na forma como o conceito de religião – e sua contraparte, o secular – são usados? Que mudanças nas práticas correspondem a mudanças nesses conceitos? Por que negar que os nativos têm religião a princípio, para depois atribuir algumas de suas práticas à categoria religião? Quais práticas se tornam religião, e por quê? Por que negar que o marxismo é uma religião? Ou por que aceitar que o marxismo é uma religião, mas negar enfaticamente que o nacionalismo americano o seja? Para responder a esses tipos de perguntas, devemos ver como a distinção religioso-secular faz parte do aparato conceitual legitimador do Estado-nação ocidental moderno.

Especificamente, a ideia de que a religião pública causa violência autoriza a marginalização dessas coisas chamadas religião de terem uma influência divisiva na vida pública e, assim, autoriza o monopólio do estado sobre a violência e a fidelidade pública. A lealdade à religião de alguém é de origem privada e, portanto, opcional; a lealdade ao estado-nação secular é o que nos unifica e não é opcional. A distinção religioso-secular ajuda, assim, a manter a lealdade pública e letal dos religiosos ao Estado-nação, evitando o confronto direto com as crenças religiosas sobre a supremacia do seu deus sobre todos os outros deuses.


Por Fábio Nobre (UEPB)

Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Pesquisa o campo dos Estudos para a Paz e Segurança, com foco especial para a Segurança Humana e as metodologias de estudo da Segurança Internacional. Doutor (2016) e mestre (2013) em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Coordena o Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR – UEPB)


Recomenda-se a leitura de:

Charles Kimball, When Religion Becomes Evil. San Francisco, CA: HarperSanFrancisco. 2002.

Mark Juergensmeyer. Thinking Globally About Religion. The Oxford Handbook of Global Religions. Oxford, 2009. 

Talal Asad. Reading a Modern Classic: W. C. Smith’s The Meaning and End of Religion. History of Religions 40, no. 3. 2001.

Wilfred Cantwell Smith. The Meaning and End of Religion. New York: Macmillan. 1962.

William T. Cavanaugh. The myth of religious violence: secular ideology and the roots of modern conflict. Oxford University Press. Oxford. 2009.

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