
Por Fábio Bento (Unipampa/CEPRIR)
24 abril 2025
Em vez de reformas no capitalismo (mudanças no sistema), Francisco manifesta, sobretudo nos seus encontros com os movimentos populares, uma posição diferente, pela mudança de sistema. Não despreza as reformas, mas indica que elas não são suficientes para a reversão do desastre ambiental no qual estamos.
Como constatou Michael Löwy, “existe uma longa tradição de crítica do capitalismo liberal, ou dos ‘excessos’ do capital na Igreja Católica. Mas nenhum Papa foi tão longe nesta condenação como Francisco”¹.
Em outubro de 2014, no Primeiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Papa Francisco destacou que é preciso “lutar contra as causas estruturais da pobreza”, “fazer face aos efeitos destruidores do império do dinheiro”. Para ele, “sente-se o vento de promessa que reacende a esperança num mundo melhor. Que esse vento se transforme em furacão de esperança. Eis o meu desejo”. Furacão para varrer o que ele chamou de “cultura do descarte”, produzida por um sistema econômico centrado no “deus dinheiro”, e não no ser humano. Um “sistema econômico centrado no deus dinheiro (que) tem também necessidade de saquear a natureza”².
“Império do dinheiro” que precisaria ser trocado por “estruturas sociais alternativas” por meio, sobretudo, do protagonismo dos movimentos populares:
Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes desviadas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação como protagonistas das grandes maiorias e este protagonismo transcende os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo de paz e de justiça duradouras pede que superemos o assistencialismo paternalista, exige que criemos novas formas de participação que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum³.
Posteriormente, no Segundo Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que ocorreu na Bolívia, em julho de 2015, e que contou com a participação de 900 organizações sociais de diversos continentes, Papa Francisco continuou tratando sobre tais questões elegendo novamente os movimentos populares como interlocutores.

Em seu discurso, após relatar que recebeu várias cartas narrando múltiplas formas de exclusão, Papa Francisco destacou:
Mas há um elo invisível que une cada uma das exclusões. Não se encontram isoladas, estão unidas por um fio invisível. Conseguimos nós reconhecê-lo? É que não se trata de questões isoladas. Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos nós que este sistema impôs a lógica do lucro a todo custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?⁴
A dramaticidade da exclusão e destruição do “solo, água, ar e todos os seres da criação” indica que o sistema precisa ser urgentemente transformado:
Digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos… E nem sequer o suporta a terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco⁵.
Mudança de sistema e não apenas mudanças no sistema, indica Francisco que rejeita tal “sistema idólatra” que sacrifica a “Mãe Terra” no “altar da produtividade”⁶:
Está-se a castigar a terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia – um dos primeiros teólogos da Igreja – chamava “o esterco do diabo”: reina a ambição desenfreada de dinheiro. É este o esterco do diabo. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra⁷.
Sua posição, portanto, não pode ser classificada dentro daquele padrão reformista anterior que identifica pontos positivos e negativos no capitalismo. A cobiça, esterco do diabo, é anterior, claro, ao capitalismo, mas tal sistema a abençoou, a normalizou, transformando-a em espécie de “virtude” a ser “religiosamente” perseguida.
De fato, alguns meses antes do encontro na Bolívia, na Audiência Geral de Quarta-feira (em 21 de janeiro de 2015), Francisco destacou que
a causa principal da pobreza é um sistema econômico que deslocou a pessoa do centro e ali colocou o deus dinheiro; um sistema econômico que exclui, exclui sempre: exclui as crianças, os idosos, os jovens, sem trabalho… e que cria a cultura do descarte em que vivemos⁸.
A palavra “progresso”, associada a capitalismo, também não escapa de sua crítica. Em sua Encíclica Laudato Si’ – Sobre o cuidado da casa comum, Francisco destacou que é preciso “redefinir o progresso”:
Um desenvolvimento tecnológico e econômico que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior não pode ser considerado progresso (FRANCISCO, 2015, n.194)⁹.
Na Bolívia, percebendo que tal mudança de sistema em direção a uma economia de fraternidade entre todos os seres pode ser percebida como tarefa hercúlea e, portanto, desanimadora, Francisco destacou:
[…] Podem fazer muito. Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos três “T” – entendido? – (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!¹⁰
Francisco indica o “processo de mudança” como modo ético, dinâmico de se passar da economia de morte (genocida) onde estamos à economia da fraternidade entre todos os seres:
Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto muito: “processo de mudança”. A mudança concebida não como algo que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu esta ou aquela estrutura social¹¹.
“Gerar processos”, recomenda, portanto, em vez de “ocupar espaços”¹².
Depois do encontro na Bolívia em 2015, Francisco voltou a se encontrar com os movimentos populares em novembro de 2016, novamente em Roma. Em vez de adotar um tom mais moderado, como esperavam seus críticos, Francisco classificou como “terrorista” o sistema econômico internacional do “controle global do dinheiro”, um sistema fundado no medo que “tiraniza e aterroriza”¹³:
O medo é alimentado, manipulado… Porque, além de ser um bom negócio para os comerciantes de armas e de morte, o medo debilita-nos, desestabiliza-nos, destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, anestesia-nos diante do sofrimento do próximo e no final torna-nos cruéis […]¹⁴
Um papa surpreendentemente militante e jovial na busca de uma sociedade fraterna, alegre, alternativa ao sistema econômico de morte onde estamos.
Sobre ele, Frei Betto, que dedica sua vida a serviço dos movimentos populares, destacou:
Em mais de 70 anos eu não tinha visto um milagre na Igreja, desde a eleição do Papa João XXIII. Eu pensava que algo assim nunca mais voltaria a acontecer. E outro milagre aconteceu: a eleição de Bergoglio, o Papa Francisco¹⁵.
Para Betto,
Francisco é, efetivamente, o primeiro Papa que fala das causas das injustiças no mundo […] Nenhum Papa havia feito isso antes. Em sua encíclica Laudato Si’ ele aponta que a desigualdade vem de um sistema que tem o capital como prioridade e não os direitos humanos¹⁶.
Francisco, o papa que, assim como o Francisco de Assis, levou em consideração a unidade de amor entre todos os seres, e não apenas entre os seres humanos. Um papa da Seridade, todos os seres, com a humanidade, e não um papa de uma humanidade separada e hostil em relação aos outros seres vivos. Um papa que, também pela humanidade, derruba o antropocentrismo do pedestal de dominação da Seridade, concebendo a humanidade a serviço da Seridade, e não o contrário.

Em suma, Francisco, o papa da reverência ao amor-serviço que distancia o pensamento ético-social católico da costumeira visão antropocêntrica de dominação e colonialismo ambiental.
Notas
- Entrevista com Michael Löwy. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/556989
- Discurso de Francisco no I Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Outubro de 2014.
- Ibid.
- Discurso de Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Bolívia, julho de 2015.
- Ibid.
- Ibid.
- Ibid.
- Audiência Geral – 21 de janeiro de 2015. Vaticano.
- Laudato Si’, Papa Francisco, 2015, n.194.
- Discurso de Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Bolívia, julho de 2015.
- Ibid.
- Ibid.
- Discurso de Francisco no III Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Vaticano, novembro de 2016.
- Ibid.
- FREI BETTO. Entrevista. 2016. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/185-noticias-2016/560650-francisco-e-o-primeiro-papa-que-fala-das-causas-da-injustica-no-mundo-entrevista-com-frei-betto
- Ibid.
Fábio Régio Bento é professor associado na Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade S. Tommaso D’Aquino (Roma, 1996). Bacharel em Teologia; Mestre em Teologia Moral Social pela Academia Alfonsiana da Pontifícia Universidade Lateranense (Roma, 1992). Pós-doutorado junto ao Núcleo de Estudos da Religião (NER) do PPG em Antropologia Social da UFRGS com pesquisa sobre Religião e Revolução na América Central. É um dos fundadores do CEPRIR.
Este texto não deve ser reproduzido sem permissão.
