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O Estado do Vaticano e a Santa Sé: Distinções Jurídicas e Políticas no Sistema Internacional

Por Maria Fernanda Aguiar (UEPB/CEPRIR)

Quando se fala no Estado da Cidade do Vaticano e na Santa Sé, é comum a ideia de que se trata de uma mesma entidade. No entanto, embora frequentemente utilizados como sinônimos, eles possuem naturezas jurídicas distintas. Como destaca a autora Anna Carletti, o Estado Vaticano representa a dimensão territorial, assegurando a independência do Papa, enquanto a Santa Sé constitui a instância que efetivamente conduz as relações diplomáticas no cenário internacional. Essa distinção não é meramente terminológica: ela evidencia a singularidade da presença vaticana na política internacional, uma vez que a Santa Sé, mais do que o Estado territorial, é o verdadeiro ator diplomático. É ela quem conduz as relações bilaterais e multilaterais, além de desempenhar papel central na mediação de conflitos no cenário global.

Instituído em 1929, por meio do Tratado de Latrão, o Estado da Cidade do Vaticano constitui a base territorial que assegura a soberania e a independência do papado frente a outros Estados. Com uma área de aproximadamente 44 hectares, trata-se do menor Estado do mundo em extensão territorial, criado com a finalidade de garantir a liberdade de ação da autoridade papal. Embora possua elementos típicos de um Estado, como governo, moeda e corpo de segurança, sua principal função não é política ou econômica, mas a de assegurar a autonomia necessária ao exercício espiritual e diplomático da Santa Sé.

Já a Santa Sé, reconhecida como sujeito de direito internacional desde a formação dos Estados modernos, corresponde à autoridade central da Igreja Católica, exercida pelo Papa e pela Cúria Romana. É por meio dela que se estabelecem as relações diplomáticas com outros Estados e organizações internacionais, o que justifica sua extensa rede de nunciaturas e sua participação ativa em processos de mediação e diálogo político no sistema internacional.

Dessa forma, compreender a distinção entre o Estado da Cidade do Vaticano e a Santa Sé é fundamental para analisar a especificidade da diplomacia pontifícia. Enquanto o primeiro se caracteriza por sua base territorial, garantindo a soberania do papado, a segunda atua como o verdadeiro ator internacional, responsável por projetar a presença e a influência vaticana no cenário global.

As origens da diplomacia pontifícia

A diplomacia pontifícia é considerada a mais antiga do mundo, com origens muito anteriores à criação do Estado da Cidade do Vaticano, em 1929. Desde a Idade Média, a Igreja Católica já exercia influência política ao enviar representantes papais a diferentes reinos, que desempenhavam funções tanto religiosas quanto seculares. Esses enviados atuavam, muitas vezes, como mediadores em conflitos entre monarcas cristãos, evidenciando o papel da Igreja como uma instituição supranacional, dotada de autoridade suficiente para influenciar os rumos da política europeia. Essa prática precoce demonstra a peculiaridade de uma diplomacia que, embora distinta dos modelos estatais tradicionais, foi capaz de moldar a atuação de outros atores internacionais.

Apesar da perda dos Estados Pontifícios, em 1870, quando Roma foi incorporada ao processo de unificação italiana, a Santa Sé manteve o seu reconhecimento como sujeito de direito internacional. Durante o período entre 1870 e 1929, ainda que desprovida de um território soberano, ela prosseguiu no estabelecimento de relações diplomáticas com diversos países. Esse fato evidencia que a legitimidade da Santa Sé não estava vinculada à posse territorial, mas derivava principalmente de sua autoridade espiritual e moral, o que lhe conferia um caráter singular no sistema internacional. Como enfatiza Carletti (2010), esse período foi decisivo para consolidar a percepção de que a Santa Sé ultrapassa a noção de Estado, afirmando-se como verdadeiro ator diplomático.

Nesse processo, a estrutura da diplomacia pontifícia foi gradualmente fortalecida, sobretudo a partir da modernidade, com a consolidação da rede de nunciaturas apostólicas como canais permanentes de representação junto aos Estados. O Congresso de Viena, em 1815, é frequentemente apontado como marco desse reconhecimento formal, ao estabelecer que o núncio apostólico ocuparia o posto de decano do corpo diplomático nos países de tradição católica. Tal disposição reforça a posição única da diplomacia pontifícia no sistema internacional, não apenas por sua antiguidade, mas também pela legitimidade contínua reconhecida pelos demais atores estatais.

Em síntese, a trajetória da diplomacia pontifícia demonstra que a atuação da Santa Sé no cenário internacional vai muito além da formação do Estado da Cidade do Vaticano, sendo consolidada por sua capacidade de mediação, pela legitimidade moral e pela estrutura institucional construída ao longo dos séculos. Essa trajetória explica por que a Santa Sé permanece, até os dias atuais, como sujeito de direito internacional, desempenhando funções que ultrapassam a lógica estatal convencional. Sob essa perspectiva histórica, torna-se possível compreender como a Santa Sé se configurou como um ator internacional singular, cuja influência transcende os limites territoriais e se projeta nas relações multilaterais contemporâneas.

A Santa Sé como ator internacional

Distinguindo-se no sistema internacional por sua natureza única, a Santa Sé é reconhecida como sujeito de direito internacional cuja legitimidade não deriva apenas de um território, mas sobretudo de sua autoridade espiritual e moral. Em contraste com o Estado da Cidade do Vaticano, a Santa Sé exerce funções internacionais em razão de sua posição histórica como centro da Igreja Católica, o que lhe permite influenciar a política global sem se enquadrar na lógica clássica dos Estados-nação. É justamente essa peculiaridade que lhe assegura um espaço diferenciado nas relações internacionais contemporâneas.

Essa singularidade se reflete na amplitude da rede diplomática mantida pela Santa Sé. Atualmente, mais de 180 Estados reconhecem e estabelecem relações formais com ela, tornando-a uma das maiores redes diplomáticas do mundo. As nunciaturas apostólicas, equivalentes às embaixadas, desempenham papel central nessa estrutura, funcionando não apenas como canais diplomáticos, mas também como instâncias de articulação religiosa e política. Essa organização permite que a Santa Sé participe ativamente tanto de negociações bilaterais quanto de fóruns multilaterais, consolidando sua relevância no sistema internacional.

A atuação da Santa Sé no plano internacional manifesta-se em diferentes frentes. Historicamente, desempenhou papel de mediadora em conflitos, como durante a Guerra Fria, e mais recentemente em processos de reaproximação diplomática, como entre Estados Unidos e Cuba. Além disso, projeta-se como defensora de valores universais, como a paz, a liberdade religiosa e os direitos humanos. Sua influência moral também se faz presente em debates globais que envolvem questões sociais, éticas e ambientais, alcançando organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas. Dessa forma, a Santa Sé se configura como um ator internacional cuja força não reside no poder material, mas em sua capacidade de persuasão e legitimidade simbólica.

A natureza singular do Vaticano

Instituído em 1929 pelo Tratado de Latrão, o Estado da Cidade do Vaticano surgiu como solução para a Questão Romana, que se arrastava desde a unificação italiana. Com pouco mais de 44 hectares e uma população bastante reduzida, trata-se do menor Estado do mundo em extensão territorial e habitantes. Contudo, sua criação não visou ao estabelecimento de um Estado nos moldes tradicionais, mas à garantia da plena independência do papado, assegurando-lhe a soberania territorial necessária para atuar livre de pressões externas.

Essa configuração confere ao Vaticano um caráter sui generis, ou seja, único em seu gênero, sem paralelo no direito e na política internacional. Em contraste com os Estados nacionais, ele não possui interesses próprios no campo das relações internacionais, pois sua existência está voltada exclusivamente a garantir a autonomia da Santa Sé. Assim, o Vaticano deve ser compreendido como um Estado instrumental, cuja razão de ser é servir como suporte material e jurídico para que a Santa Sé exerça sua missão espiritual e diplomática em escala global.

Apesar de sua reduzida dimensão territorial, o Vaticano detém um peso simbólico e político desproporcional ao seu tamanho. Como sede do papado e centro da Igreja Católica, ele carrega um significado religioso que se projeta no campo internacional. Esse simbolismo confere ao Vaticano uma visibilidade e uma relevância política que transcendem suas limitações materiais, reforçando a singularidade de sua natureza estatal e sua inseparável ligação à Santa Sé.

A diplomacia pontifícia do século XX ao XXI: entre a tradição e os novos desafios

No decorrer do século XX, a diplomacia pontifícia enfrentou grandes transformações, sem perder, no entanto, sua matriz tradicional. Com o Tratado de Latrão (1929), foi conferida ao Vaticano a base territorial necessária, mas foi a Santa Sé, com sua rede de nunciaturas e a autoridade do papado, que consolidou uma presença internacional constante. Durante a Guerra Fria, por exemplo, a diplomacia vaticana buscou atuar como mediadora, tanto no diálogo Leste-Oeste quanto em processos de distensão política, especialmente sob o pontificado de João Paulo II, cuja atuação foi decisiva para o colapso do bloco socialista no Leste europeu.

Na virada do século XXI, a diplomacia da Santa Sé passou a enfrentar novos desafios, que não se reduziam a disputas ideológicas entre blocos. Questões como globalização, fluxos migratórios, guerras civis, degradação ambiental e debates bioéticos passaram a exigir posicionamentos cada vez mais firmes. Ao mesmo tempo, a própria Igreja enfrentava crises internas, como escândalos de abusos e a diminuição de sua influência em alguns contextos, o que impôs à diplomacia pontifícia a tarefa de renovar sua legitimidade e mostrar sua relevância em um cenário de crescente pluralismo religioso e cultural.

Diante dessas transformações, a tradição permanece como elemento estruturante. A Santa Sé continua a se apresentar como mediadora em conflitos, defensora da paz e promotora de valores universais, como os direitos humanos e a liberdade religiosa. Entretanto, a novidade reside na forma como esses princípios são aplicados: se antes eram voltados sobretudo à Europa, hoje abrangem um horizonte verdadeiramente global, alcançando desde a África e a Ásia até a América Latina. Com isso, a diplomacia pontifícia contemporânea mantém-se fiel à sua tradição histórica, mas adaptada aos novos desafios que lhe são impostos pela política internacional.


Maria Fernanda Mesquita Aguiar

Graduanda de Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba. Integrante do Grupo de Pesquisa do Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (CEPRIR- CNPq/UEPB). Coordenadora de Negócios da Empresa Júnior de Relações Internacionais, Eleven Júnior, Consultoria Internacional.


Recomenda-se a leitura de

CARLETTI, Anna. O internacionalismo vaticano e a nova ordem mundial: a diplomacia pontifícia da Guerra Fria aos nossos dias. Brasília: FUNAG, 2012. 

Este texto não deve ser reproduzido sem permissão

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